Emilia Pérez: Entenda por que o filme irritou mexicanos
Aventuras Na História
Um thriller policial com comédia e, ainda por cima, um musical, 'Emilia Pérez' acumula motivos para ter chamado atenção nos últimos tempos. Dirigido e roteirizado pelo cineasta francês Jacques Audiard, o filme acompanha um famoso traficante que desaparece e, quando retorna, transformou-se numa mulher e pretende reconquistar sua família.
"Rita trabalha em um escritório de advocacia mais interessado em lavar dinheiro do que em servir a lei. Para sobreviver, ela ajuda um chefe do cartel a sair do negócio para que ela possa finalmente se tornar a mulher que sempre sonhou ser", narra a sinopse. Em seu elenco, destacam-se Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez.
A narrativa alucinante de 'Emilia Pérez' chama atenção na temporada recente de premiações: foram quatro categorias do Globo de Ouro, e já possui 13 indicações no Oscar, que ocorre em março. Porém, grande parte da repercussão em torno do longa é controversa. Entenda!
Críticas
Um motivo inicial que já levanta suspeitas sobre o filme é que, por mais que a trama se passe no México, Audiard o produziu em um estúdio perto de Paris. Além disso, exceto por Adriana Paz, o elenco conta apenas com atores não mexicanos — Karla Sofia Gascon é espanhola, enquanto Zoë Saldaña e Selena Gomez são norte-americanas.
Porém, isso continua longe de ser a maior polêmica. Isso porque, conforme escreve a jornalista mexicana Cecilia Gonzalez em publicação no X, "'Emilia Perez' é tudo o que há de ruim em um filme: estereótipos, ignorância, falta de respeito, ganhar dinheiro com uma das crises humanitárias mais graves do mundo (desaparecimentos em massa no México)".
Além disso, o diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto também criticou em suas redes sociais o fato de o filme não parecer ter nada de autêntico, exceto pela própria Adriana Paz, que interpreta a viúva de uma vítima do cartel do crime no longa.
Outro ponto polêmico foi levantado pelo diretor espanhol Eugenio Derbez, que criticou o espanhol da atriz Selena Gomez, uma norte-americana. No podcast Hablando de Cine, a apresentadora Gaby Meza, em conversa com o diretor, alegou que o desempenho da artista no longa-metragem é "desconfortável".
“O espanhol não é sua língua primária, nem secundária, nem a quinta. E é por isso que sinto que ela não sabe o que está dizendo, e se ela não sabe o que está dizendo, ela não pode dar nenhuma nuance à sua atuação. … Seu desempenho não é apenas pouco convincente, mas desconfortável”, afirmou Meza.
O diretor concordou: “Estou feliz que você esteja dizendo isso porque eu estava pensando: ‘Não acredito que ninguém está falando sobre isso?’”, questionou Derbez. “Selena é indefensável. Eu estava lá [assistindo ao filme] com as pessoas, e toda vez que aparecia uma cena [com ela], nos entreolhamos e dissemos: ‘Uau, o que é isso?’”.
Realidade brutal
O aspecto mencionado por Cecilia Gonzalez, a exploração de "uma das crises humanitárias mais graves do mundo", se deve ao fato de que, há décadas, o México é palco de uma série de crimes hediondos, também relacionados à guerra às drogas e ao tráfico no país, que culminam no desaparecimento diário de pessoas, supostamente sequestradas ou executadas.
Exemplo de como a crise segue grave no país é que, em agosto do ano passado, o Registro Nacional de Pessoas Desaparecidas e Não Localizadas (RNPDNO, na sigla em espanhol) registrou que 116.386 pessoas sumiram no país, mas de todos esses casos, apenas 40 pessoas foram condenadas em tribunal.
Isso porque, afirma a coordenadora da rede de direitos humanos no México para a filial alemã do International Human Rights, Francoise Greve, à Deutsche Welle, "autoridades estatais frequentemente estão envolvidas nos crimes", o que lhes garante certa segurança, pois controlam, até certo ponto, as investigações. "Muito poucos casos são resolvidos", pontua.
Jacques Audiard reagiu às críticas alegando que não fez muitas pesquisas sobre o México antes de criar o filme, acreditando que já sabia o suficiente sobre o país.
Por mais que a história seja baseada na realidade social e política do México, ele explica, nunca foi intenção fazer um documentário sobre o problema, ou mesmo sobre o tópico da transição de gênero.
Eu uso uma forma exagerada, a artificialidade do musical e do melodrama, para contar minha história emocionalmente", afirma Audiard à DW.
Audiard também menciona que 'Emilia Pérez' foi escrito originalmente como um libreto de ópera, e por isso manteve grande parte de sua estrutura no filme, o que combina com um drama mais exagerado na narrativa, além de permitir a entrada de números musicais. "Aqui, as canções são parte integrante do enredo, não apenas acessórios decorativos", continuou o cineasta francês.
Responsabilidade
A respeito do tema redesignação de gênero no filme, o cineasta afirma que esse não é o foco da história. "A verdadeira questão é: tenho o direito de falar sobre certos tópicos? Como um francês branco e heterossexual com pouco mais de 70 anos, tenho permissão para lidar com a transição de gênero? Com o sofrimento dos sobreviventes de crimes de cartéis? Bem, acho que tenho permissão".
"Eu vivo neste mundo, leio e percebo, penso sobre as coisas. E por que não deveria formulá-las e expressá-las, seja de forma falada, cantada ou mesmo dançada?", acrescenta Audiard. "Eu queria ir para dimensões maiores, ampliar minha perspectiva, atingir um público mais amplo. Claro, isso carrega o risco de ser acusado de simplificação. E é claro que eu poderia ter escolhido um assunto mais fácil. Eu poderia passar minha vida evitando todos os tópicos sensíveis".
Embora a motivação para criar a narrativa seja válida, Francoise Greve ainda considera a atenção dada ao filme relativamente problemática, visto que é "extremamente questionável" retratar um líder de cartel se tornando, de repente, um ativista de direitos humanos.
Ela ainda acrescenta que a liberdade de expressão permite, de fato, que Audiard faça "um filme da maneira que quiser", mas isso não é suficiente para que seja ignorado o quão doloroso o tema pode ser no México, onde ele preferiu ambientar a narrativa.