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Joana d’Arc pelos olhos de Mark Twain: a santa que encantou o crítico religioso
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Joana d’Arc pelos olhos de Mark Twain: a santa que encantou o crítico religioso

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Aventuras Na História
23/04/2023 03h00
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©Divulgação/ Martin Claret
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Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, segue como uma figura controversa dentro da literatura. Por seu jeito de escrever, mesclando humor, sátiras e comentários sociais, se tornou um dos autores mais respeitados e populares de seu tempo. 

Sua inteligência e sagacidade formaram um estilo único de escrita, o consagrando com clássicos como "As Aventuras de Tom Sawyer" (1876) e "As Aventuras de Huckleberry Finn" (1885). Além disso, ele também era conhecido por abordar com frequência questões políticas e religiosas — principalmente críticas a essas instituições. 

Por seu modo de pensar e ver o mundo, Twain transformou seu ceticismo ao catolicismo em uma fonte de debate entre crentes e ateus. No entanto, indo na contramão de seus ideais, Mark Twain se apaixonou pela história de uma mulher que viria a ser santa: Joana d’Arc. 

O encontro 

Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História, a jornalista Carla de Mojana di Cologna Renard, responsável pela tradução da nova edição de "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", lançada recentemente pela Martin Claret, conta que a relação entre Twain e Joana começou por acaso, quando Mark ainda era um tipógrafo em sua juventude. 

"Um dia, voltando para casa depois do trabalho, uma folha veio voando em sua direção. Ele a pegou e leu um trecho sobre a história de uma jovem prisioneira e ficou emocionado. Tratava-se de uma folha do livro ‘Jeanne d’Arc’, do historiador francês Jean Michelet, que tinha acabado de ser traduzido nos Estados Unidos", aponta. 

O episódio aconteceu em 1849, quando Samuel Langhorne Clemens nem sequer imaginava ser jornalista e escritor, muito menos Mark Twain. Mewsmo assim, Carla conta que ele nunca esqueceu Joana. "Ficou fascinado por ela". 

Cerca de 36 anos depois, ele publicou o romance "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", obra pela qual o próprio dizia ser seu melhor livro. "O único que escreveu por amor", afirma a tradutora. 

A dedicação de Twain pode ser vista pelo processo que demorou para finalizar sua obra: 14 anos. 12 deles dedicados a estudos e pesquisas — tanto em fontes de língua inglesa como francesa. Os outros dois Mark passou escrevendo. Ou melhor, tentando. 

"Depois da sexta tentativa infrutuosa de começo, deslanchou na sétima — o que, para ele, foi novidade, porque para os livros anteriores ele simplesmente sentou e escreveu, sem planejar nada”, explica Mojana di Cologna Renard, mestre em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em francês pela Universidade de São Paulo.

A jornalista recorda que, segundo Albert Bigelow Paine, biógrafo de Twain, depois que o autor conseguiu elaborar o plano do livro e de trabalho, ele escreveu cem mil palavras em umas seis semanas, o que era incrível, "principalmente porque ele se preocupou em ser fidedigno aos registros escritos em língua francesa, o que exigia um grande conhecimento do idioma e da história".

Nova edição de "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc"/ Crédito: Martin Claret

 

Carla aponta que muitos desses documentos históricos são citados nas primeiras páginas da nova edição publicada pela Martin Claret, que apresenta muitos trechos em língua francesa, que foram mantidos nessa tradução. "Eu os traduzi, quando necessário, em notas de rodapé", diz sobre o lançamento. 

Twain escreveu como romancista e historiador, queria fazer jus a Joana, a essa personagem histórica que ele via como um ser humano elevado, puro, altruísta, que tinha família, amigos, que brincava como qualquer criança na infância.  Foi isso que ele trouxe a público sobre Joana, por meio da literatura. Sua grandiosidade enquanto ser humano", continua. 

A figura de Joana

Nascida por volta de 1412 na aldeia de Domrémy, no nordeste da França, Joana d'Arc é oriunda de uma família camponesa, pobre e iletrada. Mesmo assim, foi criada sempre sob muita devoção à fé católica. 

Ainda em sua adolescência, Joana relatou ter começado a ouvir vozes que viriam dos céus. Essas mensagens a diziam que ela teria a missão de expulsar os ingleses da França — como consequência da Guerra dos Cem Anos; que durou de 1337 até 1453. 

+ Do possível motivo de suas visões aos milagres realizados pela padroeira: 5 curiosidades sobre Joana d'Arc

Mesmo sem nunca ter tido um treinamento, Joana d’Arc liderou seu próprio exército e ajudou consideravelmente a França na Guerra dos Cem Anos, mas acabou sendo capturada pelas forças inimigas em maio de 1430; sendo vendida aos ingleses e julgada como bruxa e herege, motivos pela qual acabou sendo queimada na fogueira. 

Pintura de Joana d'Arc, importante figura histórica e Santa/ Crédito: Domínio Público

 

Conforme conta Carla de Mojana di Cologna Renard, segundo demonstrado por Twain, Joana, em um primeiro momento, era vista como uma menina meio maluca. "Depois como visionária e salvadora, pelo povo e pela nobreza francesa — que tinha interesses políticos, é claro". 

"A missão de vida dela era coroar o rei francês, Carlos VII, e libertar a França do domínio inglês. O clero sempre a viu com certa desconfiança, porque ela dizia falar e lutar a mando de Deus, o que, para eles, era sinal de bruxaria e heresia", prossegue. 

A tradutora recorda, porém, que depois da liberação de Orléans, que estava cercada fazia vários meses, Joana d'Arc ainda comandou o exército em outras batalhas, das quais também saíram vitoriosos. 

No livro, Twain conta como foi fácil para ela montar a cavalo e aprender a lutar, e como isso encantou a todos. Ela era uma excelente oradora, dava força mental e esperança aos homens numa época em que o país estava totalmente devastado e a miséria se espalhava", salienta. 

Já na época de Twain, conforme resgata Paine, havia muitos livros publicados sobre a personagem, principalmente livros sóbrios e sombrios, nos quais Joana era retratada somente como uma santa, como alguém que não podia sorrir, aproveitar a vida, ser um ser humano. 

“A vida de Joana d’Arc” no Panteão da França, de Jules-Eugène/ Crédito: Domínio Público

 

Mas Mark Twain fez questão de quebrar esse estereótipo, segundo Mojana di Cologna Renard, por vê-la como "um ser humano ímpar". Fato é que no prefácio do tradutor, que na verdade havia sido escrito pelo próprio Twain, ou seja, uma pseudotradução, ele escreve:  

"Para obter uma estimativa justa do caráter de um homem renomado, deve-se julgá-lo pelos padrões de seu tempo, não do nosso. Julgados pelos padrões de nosso século, os indivíduos com o caráter mais nobre do século anterior perdem muito de sua grandeza; julgados pelos padrões atuais, não há provavelmente um homem ilustre de quatro ou cinco séculos atrás cujo caráter passe no teste, de todos os pontos de vista. Mas o caráter de Joana d’Arc é único. Pode ser medido pelos padrões de todas as épocas, sem receio ou apreensão quanto ao resultado. Julgado por qualquer um deles, continua impecável, continua idealmente perfeito; continua a ocupar o auge do êxito humano, o lugar mais alto já alcançado por qualquer outro mero mortal."

Do ceticismo ao trabalho mais dedicado

Embora Mark Twain tenha demonstrado inúmeras vezes seu feroz desdém pelo catolicismo, ele jamais se dedicou tanto a escrever uma livro quanto o fez com "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", e a jornalista Carla Mojana di Cologna Renard aponta razões para isso: "Joana foi assassinada pela Igreja, pelo clero". 

"Para Twain, a Bíblia era uma péssima biografia de um homem que tinha impulsos malignos, retratado minuciosamente no Antigo Testamento como alguém injusto, impiedoso e vingativo. E aí as pessoas, insatisfeitas, corrigiram isso, transformando Deus num ser misericordioso, amoroso, se afastando dos fatos. Ele recusava a ideia desse Deus como o criador do Universo", destaca.

Retrato de Mark Twain/ Crédito: Domínio Público

 

A tradutora explica que Mark Twain era mais conectado às explicações científicas, lógicas, historicamente comprovadas ou, pelo menos, verossímeis. Uma pessoa apaixonado pela História, algo que começou quando ele descobriu a história de Joana e sua importância para a França durante a Guerra dos Cem anos. "Uma menina [ele sempre a chama de ‘menina’] digna, ética, injustiçada pela Igreja e pela nobreza". 

Twain sempre defendeu os fracos e oprimidos”, afirma. 

"Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", aliás, é um grande exemplo desse ponto. Afinal, o livro foi publicado em 1896 e Joana d’Arc só viria a ser canonizada 24 anos depois, ou seja, em 1920. 

Carla ainda ressalta que Twain sempre teve uma grande admiração pelas mulheres que eram muito importantes em sua vida, como é o caso de sua filha e sua esposa. "Tanto que esse é o único livro que ele achou digno de ser dedicado à esposa, Olívia Langdon Clemens, a quem chamava de 'agente literária', que sempre lia e avaliava os escritos do marido". 

Acho que ele precisava fazer essa homenagem à Joana, como forma de encerrar com integridade sua carreira, uma espécie de gratidão, também", pontua. 

De herege a Santa

Queimada viva na fogueira em 30 de maio de 1431, Joana d'Arc só foi beatificada em 1909 e canonizada, pelo Vaticano, em 1920, cerca de cinco séculos depois de ser queimada viva na fogueira. Durante todo esse tempo, sua imagem precisou ser revisitada e ressignificada. Mas como Mark Twain ajudou nisso? Como sua obra contribuiu nesse processo? 

Carla conta que, de início, o livro não foi bem recebido pelo público, visto que alguns leitores ficaram receosos de que se tratasse de algo mais burlesco, duvidando da seriedade da narrativa; outros sentiram falta do teor cômico, da ironia — algo que até está presente  em "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", mas de maneira bem sutil. 

Uma das muitas representações da guerreira/ Crédito: Domínio Público

 

"Críticos reclamaram que Twain tinha se desviado de seu domínio de escrita. Isso tudo também porque, de certa forma, ele trouxe uma nova forma de ver e entender Joana. Com o passar do tempo, o livro foi sendo mais bem recebido, republicado, traduzido e retraduzido, como agora, no Brasil. Tudo isso contribuiu e contribui para essa discussão", frisa a tradutora. 

A meu ver, é uma obra extremamente importante, principalmente dos pontos de vista histórico e literário. Paine fala que 'Joana d'Arc é a expressão literária suprema de Mark Twain, o exemplo mais elevado, delicado e luminoso de sua obra'."

Outro ponto importante a ser mencionado é o fato que o livro foi publicado, pela primeira vez, em forma de série pela Harper’s Magazine, a partir de 1895, sem a assinatura de Mark Twain

"A decisão foi de Twain e do editor", explica a jornalista. "Os livros anteriores dele tinham um teor cômico, irônico, e como esse era totalmente diferente, ele queria que o público o lesse sem pré-julgamentos, sem ligar o autor ao romance, e que aceitasse e aprovasse o livro por seus méritos próprios, não por ter sido escrito por ele, que já era bem famoso".

Antes de "Recordações pessoais sobre Joana d’Arc", Mark Twain já não havia tido uma experiência tão boa assim com "O Príncipe e o Mendigo" (1881), que seguia uma linha diferente de seus outros livros. Com isso, Twain passou a sentir que o romance havia perdido um certo apreço por estar ligado à sua assinatura, e não queria que isso se repetisse. 

Joana d'Arc/ Crédito: Domínio Público

 

"Nunca vão me aceitar seriamente com a minha própria assinatura. As pessoas sempre querem rir com o que escrevo e ficam desapontadas se não acham engraçado. Esse é um livro sério. Significa mais para mim do que tudo o que já fiz. Preciso escrevê-lo anonimamente", disse o autor para sua esposa e filha, conforme aponta a jornalista. 

"Ele pensou na estrutura narrativa já prevendo o anonimato. Para a Harper’s Magazine, a meu ver, isso foi ótimo, deu para ter uma bela sacada de marketing: antes da primeira publicação a revista anunciou que, embora o nome do autor não fosse divulgado, se tratava de um dos romancistas mais famosos dos Estados Unidos, criando um clima de suspense. Mas não demorou muito para que descobrissem de quem se tratava", contextualiza. 

As críticas contra Twain

Apesar de seu trabalho mais elaborado, Mark Twain recebeu diversas críticas, tanto no passado quanto no presente, por gastar tanto tempo com uma personagem quanto Joana d’Arc

Um desses casos é do próprio Bernard DeVoto, editor, historiador e por um tempo gerente do espólio de Mark Twain, que considerou o romance medíocre e acusou Twain de uma "adoração da muliebridade, uma crença na santidade da feminilidade", como registrado por David Foster em ‘On the Theme of Mark Twain's Personal Recollections of Joan of Arc’.

Carla de Mojana di Cologna Renard entende esse posicionamento como uma crítica machista, que não reflete nem as riquezas nem os possíveis defeitos literários reais da obra. 

"Entender o contexto e a época em que isso foi dito ajudaria a entender essa crítica aparentemente superficial a uma obra que era a preferida do próprio autor, que passou 14 anos estudando, preparando e escrevendo o livro, cujo teor é extremamente rico dos pontos de vista histórico, literário, político, filosófico, religioso, e que fecha, com chave de ouro, sua trajetória", diz. 

A tradutora Carla de Mojana di Cologna Renard/ Crédito: Divulgação/ Martin Claret

 

A tradutora ainda considera Mark Twain, de certa forma, como um "feminista em seu tempo". "Certa vez, num encontro no clube de correspondentes de Washington, ele fez um brinde especial: 'Às mulheres, o orgulho das profissões e nossa joia'."

A jornalista termina apontando que o ato poderia ser visto como incômodo a muitos homens. Além disso, Mark Twain afirmou que escreveu esse livro sabendo dos riscos de incompreensão que corria, por apresentar algo totalmente diferente. 

Mas ele não ligava, porque o tinha escrito por amor”, finaliza.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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