Muito além de 'O Auto da Compadecida': A importância literária de Ariano Suassuna

Aventuras Na História






Dramaturgo, poeta e romancista. Ariano Suassuna deixou para trás um legado cultural único na história literária brasileira. Usando elementos do folclore nordestino para compor suas obras, é reconhecido, entre outras coisas, por sua peça mais famosa: 'O Auto da Compadecida'.
Além disso, no ano de 1970, fundou o Movimento Armorial — projeto artístico cujo objetivo era criar uma arte erudita brasileira com aspectos emprestados da cultura popular encontrada na região Nordeste do país.
"No que diz respeito à cultura brasileira, Ariano foi um intelectual público — que participou ativamente dos debates fora dos nichos universitários — provocando reflexões sobre o que seria uma 'arte brasileira', principalmente no que diz respeito à chamada 'cultura popular' e suas relações com o dito mundo erudito", explica o pesquisador Anderson da Silva Almeida, doutor e mestre em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que organizou a obra 'Ariano Suassuna no teatro da vida', em entrevista à Aventuras na História
Ao criar o Movimento Armorial no início dos anos 1970, dentro do Departamento de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco, Ariano intensificou o debate que vinha desde os anos 1950–1960 sobre qual deveria ser o papel da arte em uma sociedade".
Silva Almeida aponta que a discussão era pautada por dois lados: um grupo dos defensores do nacional popular, que dialogam com o realismo socialista: "que defendia uma arte engajada e mais política", contextualiza.
Do outro, havia uma vertente mais conservadora, que reivindicava uma arte livre das ideologias. "Embora também fosse ideológica, pois o debate sobre nacionalismo, artes e práticas culturais, também foi uma preocupação da ditadura civil-militar (1964–1985)".
Muito além de O Auto

O pesquisador conta que a literatura de folhetos, a famosa literatura de cordel, foi a grande fonte inspiradora para as grandes obras teatrais de Ariano Suassuna. "Houve uma retroalimentação, ou seja, o escritor paraibano se inspirou em grandes poetas que o antecederam, a exemplo de Leandro Gomes de Barros, e, ao mesmo tempo, trouxe os poetas populares para o meio universitário e acadêmico, numa espécie de circularidade cultural, um conceito do linguista russo Mikhail Bakhtin".
Embora 'O Auto da Compadecida' seja sua obra mais conhecida, muito por conta do filme de 2000 — que ganhou continuidade recentemente —, a literatura e dramaturgia de Suassuna vai muito além disso.
Entre 1947 e 1948 o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) organizou um concurso e Ariano venceu com o texto ‘Uma mulher vestida de sol’. Vejam que ele tinha apenas 20 anos de idade, Ariano nasceu em 1927", conta Anderson.
O pesquisador também destaca a montagem de 'Cantam as harpas de Sião/O desertor de Princesa' de 1948 e 'Os homens de barro', peça em 3 atos, como obras essenciais para conhecer o dramaturgo. "E, em 1950, o 'Auto de João da Cruz', que também recebeu prêmio da crítica especializada".
Porém, como destacam alguns especialistas em 'Ariano Suassuna no teatro da vida', a virada cômica na obra de Ariano só acontece a partir dos anos 1950. "As peças anteriores eram consideradas um tanto trágicas e amargas".
Naquele ano em específico, Suassuna concluiu o curso de Direito em Recife e voltou para Taperoá para se tratar de uma tuberculose. "Nesse período de tratamento, já namorando Zélia de Andrade Lima, Ariano escreve 'Torturas de um coração ou em boca fechada não entra mosquito' (1951), em homenagem à jovem Zélia".
"É a partir desse texto que a alegria, a sátira, a picardia e o riso começam a se destacar nos textos de 'Dinga Velho', embora ainda fosse jovem, com apenas 24 anos", explica. "A presença de Zélia em sua vida é um fator decisivo, já que o garoto 'Chocalho' — outro apelido de Ariano —, sentia-se feio e trazia um tom áspero em seus primeiros enredos".
Em 1955, Ariano Suassuna publica 'A Compadecida'. "O texto e a montagem foram sucessos imediatos, vencendo prêmios regionais e nacionais entre 1956 e 1957 e traduzida para a Polônia, Estados Unidos, Alemanha, Espanha e França, por exemplo, entre 1959 e 1971".
"Vale mencionar que personagens como Pedro Malasartes, Cancão de fogo, Tirateima e João Grilo, ou seja, os anti-heróis amarelos, estão presentes em narrativas orais e na literatura de folhetos (cordéis) muito antes do texto dramatúrgico de Ariano", diz Silva Almeida.
Se focarmos na literatura mais acadêmica, sua obra mais elogiada é, sem dúvida, 'A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta', de 1971, que mereceu a seguinte análise de Carlos Drummond de Andrade: '...não é qualquer vida que gera obra desse calibre'".
O Auto 2
Ao contrário do filme de 2000, que foi uma adaptação de uma história escrita por Ariano Suassuna, 'O Auto da Compadecida 2' foi criado sem uma sequência escrita de fato pelo dramaturgo brasileiro. Mesmo assim, se mantém fiel ao universo criado por ele, explorando contos como 'Farsa da Boa Preguiça'.
Apesar disso, Anderson da Silva Almeida vê com bons olhos a sequência do filme, mas faz suas ressalvas: "Embora o texto não seja de Ariano, vê-se claramente a preocupação dos roteiristas Guel Arraes, Adriana Falcão, João Falcão e Jorge Furtado em manter as principais características da narrativa, do ritmo, do enredo e do que seria a ‘essência’ que caracterizou o Movimento Armorial, embora, em algumas críticas contrárias, a ‘aparência’ não tenha agradado".
"Gostei, particularmente, de ver Rosinha mais empoderada; de Chicó ter percebido e reconhecido a importância do letramento para a vida prática; da trilha sonora, com um arranjo fantástico e uma interpretação belíssima de Chico César em ‘Como vai você?’; a ideia de Matheus Nachtergaele interpretar Jesus e o Diabo (Encourado) também foi interessante para provocar a reflexão sobre o bem e o mal que habita em cada um de nós".
Evidentemente, não é um texto Suassuniano e, nesse sentido, continuo a preferir a montagem cinematográfica de 1999/2000, mais realista, que continua na memória coletiva de minha geração".
O Movimento Armorial
Criado em 1970, o Movimento Armorial foi um grande marco na história da cultura brasileira. Idealizado pelo dramaturgo e escritor paraibano Ariano Suassuna, o movimento propunha a produção das mais variadas formas de arte a partir da mistura do erudito e do popular, sempre exaltando a cultura brasileira, em especial a nordestina.
"O nome vem da heráldica, dos brasões, inspirado a partir dos sertões, dos signos presentes nos ferros de marcar o rebanho, nas bandeiras das cavalhadas, nos estandartes dos maracatus, nos escudos dos clubes de futebol, por exemplo", aponta o pesquisador.
Silva Almeida, mais uma vez, aponta que a premissa do movimento é híbrida: de uma arte originariamente aristocrática que se transforma em algo popular. “Daí a simpatia de Ariano pela estética da Monarquia que, aos poucos, ele foi reconfigurando e ressignificando, até se distanciar, indicando o que ele chamava de ‘povo brasileiro’ como o elemento criador, para além das elites econômicas”.
"Contudo, é preciso sublinharmos que a ideia armorial vai além das artes plásticas. Ela perpassa a literatura, a música e a pintura, por exemplo", diz. "É algo muito mais abrangente".

O pesquisador aponta que Ariano pretendia, ao lado de Francisco Brennand, do maestro Cussy de Almeida, dentre outros, fabricar, inventar, construir o que ele dizia ser uma arte erudita brasileira com base nas raízes populares do Nordeste, que também é uma região inventada, no sentido de ser algo elaborado.
"A grande crítica que se faz ao Movimento Armorial é que sua concepção teórica não ataca o sistema de poder, não tem engajamento político e teria se beneficiado dos artistas populares sem o devido reconhecimento a eles e a elas, o que é facilmente contestado".
Há, também, um grande embate com a Tropicália e os defensores da Pernambucália em Recife, como foi o caso de Jomard Muniz de Britto, que durante muito tempo rivalizou com Ariano na cena recifense, como defensor da Tropicália e do Cinema Novo".
Por fim, aponta que a discussão sobre o Movimento Armorial, as comemorações dos 10 anos da morte de Suassuna (em 2010) e o lançamento de 'O Auto da Compadecida 2' são sintomas de que ainda falaremos muito sobre o legado de Ariano, "sem esquecermos seus erros, fracassos, metamorfoses e acertos".
"Mais de 4 milhões de pessoas já foram aos cinemas levadas pelas criativas chamadas da nova montagem. Um dos vídeos de Ariano no youtube já foi visto por mais de 7 milhões de pessoas. A partir dessa perspectiva que ele tanto combatia, dos meios de comunicação de massa, o armorial continua a ser, no mínimo, uma grande curiosidade", finaliza.


