Filmes de terror social escancaram os medos de todos nós
Tecmundo
Em um subúrbio de Chicago, um homem negro é espancado e morto por policiais depois que ouvem uma criança gritar. Ao entrar em um porão dentro de um conjunto habitacional popular, a polícia assassina o sujeito, sem qualquer chance de defesa. Anos mais tarde, sua memória passa a ser relembrada e causar sensações sombrias nas pessoas que hoje moram no mesmo local.
A sinopse acima tem vários elementos que lembram uma notícia: remetem diretamente a acontecimentos recentes e muito noticiados de pessoas negras mortas por autoridades americanas de forma covarde. O caso mais famoso é o de George Floyd, um homem desempregado cuja morte por sufocamento – enquanto, desesperado, dizia “I can’t breathe” (ou seja, que não estava respirando) – suscitou um levante representado pelo movimento Black Lives Matter, que luta por justiça racial. Mas pasme: o primeiro parágrafo deste texto descreve a cena de um filme de terror. Falo aqui de A lenda de Candyman, dirigido por Nia DaCosta, um dos lançamentos cinematográficos mais cultuados de 2021.
Parece estranho imaginar que um filme de terror possa abordar questões de relevância social? Se você acha que sim, saiba que A lenda de Candyman não está sozinho nesta empreitada. O filme se insere dentro de uma espécie de “movimento” cinematográfico que hoje muitos chamam de “terror social”. São produções que usam convenções e estratégias do gênero de horror (cuja experiência serve, sobretudo, para estimular as tensões do suspense e do medo) para discutir questões importantes da vida social contemporânea.
A lenda de Candyman, como o título sugere, é a continuação do filme O mistério de Candyman, de 1992. A temática de crítica social já estava presente no filme original, mas foi intensificada na obra de Nia DaCosta. O filme-sequência se desdobra no mesmo local que o primeiro: o conjunto habitacional de Cabrini-Green. Só que agora ele está gentrificado (processo de quando uma região, normalmente pobre ou periférica, é “remodelada” e passa a ter valores de aluguel bem mais caros, o que afasta os moradores originais) e repleto de hipsters.
Neste cenário, um artista visual negro, que tenta suceder no mercado (branco) da arte, faz uma pesquisa e tem contato com a lenda de Candyman, o espírito de um homem negro que foi assassinado no século XIX por ter engravidado uma mulher branca. Ele logo começa a ficar obcecado (e, claro, aterrorizado) pelo espírito que é invocado através do espelho.
Os filmes que se encaixam nessa proposta de terror social buscam explorar o gênero de uma forma que, além de gerar entretenimento, também traga reflexões mais profundas. É o caso de outras obras famosas, como Corra!, do diretor Jordan Peele, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2018. O filme traz uma premissa bastante interessante: um jovem negro aceita o convite de sua namorada branca para visitar a família dela. Na casa, tudo parece estranho: os empregados parecem catatônicos e incomodados com a presença do visitante. Os pais e o irmão da namorada logo revelam também facetas pouco amigáveis, e se mostram bastante perigosos. O que se desdobra, ao longo do filme, é uma trama fantasiosa (que flerta também com as convenções da ficção científica, além do horror) no qual o racismo e a desigualdade raciais são incômodos panos de fundo.
O filme 'Corra!' parte de um romance interracial para discutir medos modernos.
Jordan Peele, aliás, se tornou uma das grandes referências no terror social. Além de ser o produtor de A lenda de Candyman, ele também dirigiu Nós, de 2019. Nesta obra, as discussões sobre a luta antirracismo, típicas da obra do diretor, se cruzam com outra temática, a da xenofobia simbolizada pelo governo Trump, que entendia as outras nações, especialmente as latinas, como subalternas. Não por acaso, Nós trabalha em seu enredo com uma metáfora de espaço, representando o “outro” deste “nós” literalmente no underground, ou seja, nos “porões” do local que seria reservado apenas para os americanos "convencionais".
O apelo dos filmes de terror social se dá justamente por sua capacidade de trazer à tona os horrores que existem dentro de cada um de nós – e que, na maior parte das vezes, ficam escondidos em nosso âmago, sem que tenhamos coragem de encará-los. Dito de outra forma: os medos retratados em obras de como A lenda de Candyman, Corra! e Nós, entre outros filmes que também se encaixam dentro dessa leva, são os nossos medos atuais e cotidianos.
https://www.youtube.com/watch?v=ikDJlfuU758
Vale lembrar que, embora esses filmes estejam se tornando cada vez mais profícuos, isso não é exatamente uma novidade ou algo exclusivo do cinema. Nos anos 60, George A. Romero, com seus filmes de zumbis, como A noite dos mortos vivos (1968), já tematizava terrores associados aos perigos de sua época. As próprias histórias infantis, como os contos de fadas que ouvimos desde que nascemos, sempre tiveram uma tarefa de trazer à tona os nossos horrores.
Pego carona aqui na explicação dada pelo crítico Rodolfo Stancki, ao mencionar a relevância do cinema do horror: “as histórias que circulam na nossa sociedade podem ser bons registros sobre como pensamos nossa própria realidade. Com a interpretação certa, uma fábula pode virar um documento histórico fundamental para descobrir a mentalidade de um povo. Se vale para os livros, vale para os filmes. Pela lógica, poderíamos afirmar que o cinema de horror é um mapeamento dos nossos medos”.
Se esses filmes estão se tornando cada vez mais recorrentes entre os realizadores do gênero, isso acontece também por um possível amadurecimento na concepção de que horror não é mero escapismo, e que os temores que nos acometem hoje são mais reais do que podem parecer. Talvez por isso mesmo, estas obras se tornam facilmente objeto de culto entre os fãs.
As mensagens difundidas nestes filmes estão em vários detalhes. A Lenda de Candyman, por exemplo, usa na trilha sonora uma nova versão de “Say my name”, música bastante conhecida do grupo Destiny’s Child, formado por Beyoncé, Kelly Rowland e Michelle Williams nos anos 1990. A escolha não é por acaso: “say my name” remete às hashtags Say Her Name ou Say Their Names, que buscam trazer visibilidade aos nomes das cidadãs e cidadãos negros mortos pela polícia americana que, ao terem seus nomes destacados, deixam de ser apenas uma estatística. Mais um lembrete importante que os medos na vida real são bem mais assustadores do que os dos filmes.
Maura Martins é jornalista, professora e editora do portal de jornalismo cultural Escotilha. No TecMundo, é colunista nos cadernos Minha Série e Cultura Geek.