Pacto Brutal acerta ao priorizar a versão da vítima (crítica)
Tecmundo
Divulgada com bastante destaque pelo HBO Max, a série documental Pacto Brutal parece, à primeira vista, mais uma leva do gênero true crime, tão em voga nos últimos anos. Afinal, estamos diante da recapitulação de um dos crimes que mais repercutiu midiaticamente no Brasil no início dos anos 1990: o assassinato da atriz Daniella Perez, filha da autora Gloria Perez, enquanto ela participava da novela De Corpo e Alma, da Globo, escrita pela mãe.
Mas um olhar mais atento irá notar que a parte mais interessante de Pacto Brutal não diz respeito à bisbilhotice em torno do crime e da mente dos criminosos (o então ator Guilherme de Pádua, que era par romântico de Daniella na novela, e sua esposa Paula Thomaz) – que está presente, sim, na série, incluindo aqui (muitas) cenas mórbidas e enfoques no cadáver de Daniella.
A parte mais interessante da série está na abordagem do circo midiático que foi montado a partir de 1992 em torno deste caso, a ponto de ele ter eclipsado nos jornais a renúncia do presidente Fernando Collor, que ocorreu no mesmo dia do assassinato. Ou seja, embora navegue na onda true crime, Pacto Brutal mostra-se mais relevante quando é vista como um resgate histórico de um tempo que não existe mais – ou será que existe?
O caso Daniella Perez
(Fonte: O Tempo)
Muitos leitores deste texto talvez não tenham nascido em 1992 e, por motivos óbvios, não vivenciaram o impacto deste caso. Por isso, vale a pena contextualizar como o mundo era nesta época e por que a morte de Daniella Perez interessou a tanta gente que, aparentemente, não tinha nada a ver com ela.
Lembremos que, nesse início dos anos 90, a internet não existia – ou, pelo menos, não em âmbito doméstico no Brasil. A televisão, por outro lado, centralizava a vida de boa parte da população, e o horário mais nobre era o da novela das oito na Globo. Os temas que transcorriam numa novela e os artistas que estavam nela geravam muito mais repercussão do que hoje.
Em 1992, era exibida De Corpo e Alma, primeiro folhetim de Glória Perez neste cobiçado horário. A novela, assim como todas as de Glória Perez, trazia como mote central algum tema que transcorria na vida real. No caso desta, falava-se de transplante de órgãos. A protagonista era Paloma, vivida por Cristiana Oliveira, que recebia o coração de Betina, a esposa de Tarcisio Meira. Ambos acabavam se apaixonando.
Daniella Perez, a filha da autora, participava da novela no papel da irmã de Paloma, Yasmin. Namorada de Caio (Fabio Assunção), ela tinha um envolvimento com o motorista de ônibus Bira, papel de Guilherme de Pádua. Uma vez que o romance dos dois na novela estava chegando ao fim, Guilherme teria começado a se desesperar e a assediar Daniella para falar com a mãe sobre o seu papel. O resultado foi a morte dela em 28 de dezembro, contada em detalhes em Pacto Brutal.
Todos estes elementos são importantes para entender por que este assassinato repercutiu tanto, a ponto de levar multidões para o velório de uma atriz bastante jovem, que ainda não era tão conhecida assim. A fusão entre fato e ficção foi estimulada pelo jornalismo da época e pela própria Globo em suas reportagens. Muitos jornais noticiaram a morte não de Daniella, mas de Yasmin, pelas mãos não de Guilherme, mas de Bira.
A confusão entre estes limites foi tão exacerbada que até hoje há pessoas que guardavam na memória (incluindo esta autora que vos escreve) que Daniella e Guilherme tinham um caso na época, o que provou-se ser mentira
Os desafios da reconstrução do caso
Pacto Brutal tem como grande desafio reorganizar toda esta história confusa, escolhendo o que vai priorizar e o que se pretende deixar de lado, em prol de uma narrativa minimamente coerente. A opção escolhida pelos diretores é o foco nos depoimentos dos envolvidos, sobretudo o de Glória Perez, o que enfatiza o caráter emotivo fortalecido nas lembranças sobre Daniella – sempre apontada como uma estrela, que estaria hoje entre as grandes atrizes do país. Uma certa idealização pós-morte é inevitável, como acontece a todos que perdem um ente amado. Comove, por exemplo, ver o sofrimento que existe até hoje na fala de seu então marido, Raul Gazolla.
Algumas críticas à série do HBO Max apontam ao fato de que os assassinos (Guilherme de Pádua e sua esposa na época, Paula Thomaz) não foram ouvidos, nem seus advogados de defesa. É, claramente, um documentário com posição: enfatiza-se a versão dos parentes de Daniella e desconstrói-se as versões dadas pelos então suspeitos (inicialmente, Guilherme de Pádua tentou pintar uma versão de que seria um homem honrado que matou uma mulher assediadora para proteger sua honra, narrativa logo posta a chão pelas tantas evidências).
A grande questão em torno da série parece ser essa: Pacto Brutal continua válida ao assumir sempre o lado da vítima, representada pela voz de seus familiares? É preciso haver isenção nesses casos, mesmo que seja para promulgar mentiras – no caso, as defesas desesperadas que os assassinos deram no intuito de encaixar justificativas ao injustificável?
Considero legítima a posição dos diretores, Tatiana Issa e Guto Barra, conforme foi colocada em uma reportagem da Folha de São Paulo: trata-se de um documentário, e não de jornalismo, o que tira dele certos compromissos de imparcialidade (mas não todos). Da mesma forma, estamos diante de um produto audiovisual, e não da postulação de um caso judicial, em que ambos os lados precisam ter as mesmas chances de defesa. Isto, inclusive, foi feito, nos âmbitos adequados para isso.
Além disso, a mensagem de toda a abordagem feita nos episódios de Pacto Brutal também parece ser a seguinte: dar espaço infinito a certo tema, nem que seja para “homenagear” a vítima, é, de alguma forma, revitimizá-la. Daniella Perez depois de sua morte deve ter aparecido mais – e falada sobre – do que em toda sua curta vida de 22 anos. Sua imagem foi replicada e ela foi sedimentada no imaginário das pessoas nesta época como a mulher linda, talentosa, mas cuja memória ficou eternamente atrelada à dos seus assassinos.
30 anos depois de sua morte, Pacto Brutal resgata sua história, espera-se, pela última vez, e nutre a expectativa de que ela possa ser lembrada por si mesma e pelo pouco que pode viver.