The Many Saints of Newark desvenda a gênese da Família Soprano (crítica)
Tecmundo
Poucas séries televisivas conseguem agrupar um culto tão fiel quanto Família Soprano, da HBO. Exibida entre os anos de 1999 e 2007, a série, criada pelo showrunner David Chase, foi reconhecida pela sua qualidade (recebeu 21 prêmios Emmy e cinco Globos de Ouro) e entrou para a memória da cultura popular. Até hoje, muita gente segue cativada pela saga da família capitaneada pelo mafioso Tony Soprano, um personagem extremamente carismático, cuja vida transitava entre as ações tomadas em prol dos negócios e suas crises de consciência (vale lembrar que Família Soprano se inicia com Tony indo parar na terapia, após ter crises de pânico).
Para muitos críticos, Família Soprano configura como uma das séries mais impactantes na história da televisão. Ela seria um marco divisório na TV: uma era de ouro se iniciaria depois que a jornada de Tony, e dos incontáveis personagens ao seu redor, começou a ser contada pela HBO. Isso se dá por se tratar de uma série complexa, com um texto denso e repleto de nuances que requisitam um espectador preparado para acompanhá-la. Em um ensaio na revista Piauí, o crítico literário Alejandro Chacoff explicou: “a ruptura de Família Soprano com os dramas televisivos da década de 80 e 90 não é só temática; ela se dá também na forma. Os episódios não terminam com ganchos. As cenas de violência são menos frequentes do que é praxe nos filmes de máfia. A maioria dos mafiosos mais relevantes da série morre não em tiroteios ou brigas, mas de câncer, aneurismas e infartos; outro sofre de demência na velhice”.
Com tamanho peso na cultura, seria até estranho imaginar que a história encerrada em 2007 (de forma um tanto aberta, com um episódio final que até hoje é discutido pelos fãs) nunca fosse retomada pela HBO. Mas havia um grande empecilho: o intérprete do magnânimo Tony Soprano, o ator James Gandolfini, morreu precocemente em 2013, aos 51 anos, após sofrer uma parada cardíaca. Por isso, o filme The Many Saints of Newark, lançado em outubro pela HBO, procurou trazer uma solução inusitada: ao invés de contar sobre o que ocorreu com os personagens após o fim da série, ele aparece com um prequel, ou seja, como uma história que antecede à contada em Família Soprano.
Ou seja: The Many Saints of Newark se propõe a costurar a gênese de Tony Soprano e seus asseclas. Retoma, portanto, as histórias que são contadas (e não mostradas, com exceção de alguns flashbacks eventuais) pelos mafiosos durante a série em torno de seus ancestrais, os criadores dos negócios escusos que sustentam estes profissionais da extorsão no estado de New Jersey. Para completar, o filme traz uma atração a mais: o jovem Tony Soprano é interpretado pelo próprio filme de James Gandolfini, o ator Michael Gandolfini, de 22 anos.
A expectativa dos fãs, portanto, era grande. Por isso, pode-se dizer que The Many Saints of Newark ruma a um patamar inatingível, que é contemplar esse imaginário consolidado há pelo menos duas décadas. Neste sentido, dá para dizer que o filme se revela um pouco irregular. Por um lado, faz jus à promessa de desvendar algumas das raízes dessa família; por outro, acaba pecando quanto ao formato (não parece que o filme fosse uma escolha mais adequada a fazer) e quanto à construção de algumas personagens.
Tony Soprano (Michael Imperioli) ao lado do pai, Johnny Boy (Jon Bernthal), e da irmã, Janice (Alexandra Intrator).
Vejamos por partes. O filme da HBO se inicia de forma instigante e mesmo surpreendente. Há um narrador morto, aos moldes do Brás Cubas de Machado de Assis. É Christopher Moltisanti (Michael Imperioli, presente no filme só com a voz), o sobrinho emprestado de Tony, a quem ele trata como filho durante toda a série e acaba matando, numa cena brutal e chocante. Christopher narra o começo do filme direto do túmulo. Sabemos, portanto, que essa é uma história com tom meio “bíblico”, em que saberemos um pouco sobre as origens – o “gênesis” – da saga maldita enfrentada por esses mafiosos.
Noutro arroubo de criatividade, The Many Saints of Newark não se centraliza em Tony Soprano ou mesmo em seu pai. O personagem principal aqui é Dickie Montisanti (vivido por Alessandro Nivola), o pai de Christopher (que é um filho “bastardo”, nascido do relacionamento de Dickie com a goomar, que é a viúva de seu pai). Como o pai de Tony, Johnny Boy Soprano (Jon Bernthal, famoso por The Walking Dead) passa um bom tempo preso, é Dickie que funcionará como um “pai espiritual” e guia de Tony. O filme sugere, então, que essa seria a razão pela qual Tony “adota” Christopher na série.
A grande qualidade do filme, a meu ver, está na sua perfeita sincronia com o “clima” da série. Como já dito neste texto, Família Soprano não é uma série fácil. Pelo contrário: lúgubre, sempre foi uma série incômoda, que nos convidou a adentrar na vida pouco prazerosa de Tony, um homem poderoso que se sente esmagado pelos próprios poderes. O filme, igualmente, não é exatamente prazeroso. Também enfrentamos aqui a atração de mergulharmos na mente de homens atormentados. Dickie, por exemplo, é um sujeito fiel ao pai (Aldo Moltisanti, interpretado por Ray Liotta, de Os Bons Companheiros), mas o odeia na mesma medida que o ama.
A marca dessa família, portanto, é a da tragédia. Isso se explicita o tempo todo no filme e na série desde a sua abertura - quando assistimos, durante 8 anos, à cena em que Tony dirige em New Jersey embalado pela música hipnótica “Woke up this morning”, do Alabama 3, cuja letra deixava claro: “minha mãe sempre disse que eu seria o escolhido/ ela disse: ‘você é um em um milhão/ mas você nasceu com um sinal de azar/ com uma lua azul nos seus olhos”. Estar na máfia, portanto, é menos uma escolha e mais um fardo desgraçado que é preciso carregar.
Mas, como sugeri, há pontos baixos no filme. O principal é a escolha pelo formato filme, e não série. Digo isso porque há muitos elementos que ficam em aberto na história. Uma trama paralela que parece importante, mas parece não desenvolvida, é a tensão racial entre os imigrantes italianos e os movimentos de resistência negra que se levantam na época em que se passa a série, nos anos 60. Os conflitos são simbolizados especialmente nas relações da máfia com Harold McBrayer (Leslie Odom Jr.), um funcionário negro que ousa se rebelar à hierarquia e quer fundar o seu próprio sistema de extorsão. Sua história acaba sendo largada pela metade, dando margem a uma outra linha que poderia ser explorada numa eventual série.
Por isso, por mais que The Many Saints of Newark contemple os espectadores desejosos por mais conteúdos, ele se encerra com um gosto de “quero mais” e a sensação de que nem tudo foi entregue. Quem sabe essa não seja uma pista de que em breve a HBO trará mais histórias desta família marcada pelo signo da desgraça, que nós, os fãs, amamos sem saber explicar bem o porquê.