Corinthians muda versão sobre empresa de segurança, contraria compliance e pode voltar à mira da PF
Gazeta Esportiva
No dia 26 de junho, a Polícia Federal foi ao Parque São Jorge para fiscalizar a Workserv Serviços Terceirizados, empresa que estava prestando serviços relacionados a área de segurança ao Corinthians, mas que operava de maneira clandestina, sem regularização, sem autorização e Cnae (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) adequado, conforme revelação feita pela Gazeta Esportiva 18 dias antes da ação da PF.
À época da visita dos policiais, o clube divulgou uma nota oficial e afirmou que a Polícia Federal não havia encontrado “nada fora da normalidade” após a averiguação. Posteriormente, no mesmo dia, o Corinthians, também em nota à imprensa, disse que a Workserv “não faz segurança patrimonial, mas que presta somente serviços de escolta. Ou seja, não fica alocada no clube ou na Arena”.
As duas versões do Corinthians sobre o caso mudaram agora, após novo contato desta reportagem.
O clube reconheceu que “por orientação da Polícia Federal, decidiu encerrar a prestação de serviços da Workserv”. O documento de distrato passou a vigorar no dia 27 de junho, dia seguinte à batida da polícia, informação omitida à época.
O clube também admitiu que a Workserv prestava, sim, serviço de segurança “nos termos do objeto das prestações de serviços”. Tais termos, gravados no texto do distrato, citam “preservação de edificações e pessoas”, o que caracteriza segurança patrimonial, além de controle operacional no CT Joaquim Grava e, em dias de jogos, tanto na Neo Química Arena como na Fazendinha.
Outra evidência de que a Workserv nunca fez apenas trabalho de escolta e executou, sim, segurança patrimonial é o fato do clube, agora, na mesma nota à Gazeta, afirmar que “tanto a empresa Workserv e a empresa Kiara possuem o mesmo objeto de prestação de serviços, sendo que a segunda foi sucessora da primeira”.
Pois bem, o objeto do contrato entre Corinthians e Kiara Segurança Privada esclarece o compromisso da empresa com “serviços de segurança” na sede social, na Fazendinha, no CT Joaquim Grava, na Neo Química Arena e nas viagens da equipe masculina.
R$ 2 MILHÕES SEM CONTRATO
A Workserv operou de maneira clandestina e prestou serviço ao Corinthians de janeiro a julho, sem firmar contrato com o clube em momento algum. A empresa emitiu, pelo menos, 29 notas fiscais – cinco delas foram canceladas – endereçadas ao clube, com numeração sequencial de 1 a 29 e com “prestação de serviço de segurança”, inclusive para dias de jogos, citada na discriminação de algumas NFs. A soma dos valores destas notas é de R$ 2,8 milhões, ou de R$ 2,1 milhões com a subtração das notas canceladas.
No dia 7 de outubro, o Corinthians assinou um termo de distrato e quitação, com data retroativa de validade, a partir do dia 27 de junho, mesmo sem nunca ter assinado contrato de prestação de serviço com a Workserv.
“A situação contratual com a empresa Workserv foi completamente formalizada e resolvida, sendo que a mesma não presta mais serviços para o SCCP, inexistindo qualquer pendência”, disse o clube sobre o caso, em nota.
CALOTE
Antes da Workserv, o Corinthians tinha contrato com a Verssat Segurança LTDA. Porém, o clube decidiu não efetuar nenhum pagamento à empresa em 2024 e rescindiu o vínculo em maio. Neste período de cinco meses, a empresa nunca deixou de prestar os serviços contratados, que tinham um custo mensal de, aproximadamente, R$ 176 mil, cerca de R$ 175 mil mais barato que o custo da Workserv, que ainda foi acusada por Anderson Dantas, proprietário da Verssat, de assediar os funcionários dele neste momento de transição feito pelo clube.
Mesmo assim, a Workserv emitiu nota fiscal para receber a mensalidade integral de R$ 341 mil pelo serviço, em teoria, prestado durante todo o mês de janeiro, quando o time profissional do Corinthians, por exemplo, fez apenas dois jogos como mandante em Itaquera.
Estes acontecimentos resultaram em uma dívida com a Verssat que, atualmente, circunda os R$ 3 milhões e terá de ser resolvida pela Justiça.
“As empresas Verssat e Workserv prestavam serviços diferentes e em locais distintos deste SCCP”, se limitou em responder o clube, em nota à reportagem.
NOVA EMPRESA IRREGULAR
Para substituir a Workserv, o Corinthians contratou a Kiara Segurança Privada LTDA, outra empresa que não obtinha permissão da PF para prestar os serviços adquiridos pelo clube.
O vínculo foi assinado em 1º de outubro, mas entrou em vigor no dia 27 de junho, mesma data que passou a vigorar o distrato com a Workserv. No entanto, a Kiara só obteve o alvará para exercer a atividade de segurança pessoal no dia 25 de setembro. Desta maneira, ela atendeu ao Corinthians de maneira irregular por três meses.
Por determinação estatutária, o Corinthians precisa, sempre, avaliar, ao menos, três orçamentos. Neste caso, o clube recebeu propostas de outras duas empresas além da Kiara, mas ambas foram enviadas após o dia 27 de junho. As propostas ‘recusadas’ chegaram à diretoria alvinegra nos dias 2 e 15 de julho. Outro ponto que chama a atenção é o fato da proposta da Kiara ter sido entregue ao Corinthians no próprio dia 27 de junho.
Sendo assim, de acordo com os documentos assinados, em menos de 24 horas, o Corinthians dispensou a Workserv, recebeu a proposta da Kiara e a “nova empresa” passou a prestar o serviço contratado, tudo no mesmo dia, inclusive com cobrança financeira proporcional.
O contrato do Corinthians com a Kiara prevê uma despesa de R$ 358 mil por mês e vai até 30 de junho de 2026, ou seja, o acordo é de R$ 8,6 milhões. Se cumprido até o fim, esta despesa será ainda maior para o clube, pois só de agosto a outubro deste ano, a Kiara já emitiu, pelo menos, R$ 1,3 milhão em notas fiscais ao Corinthians devido a cobranças adicionais por outros serviços contratados e não especificados. As NFs da Kiara ao Timão, novamente, representam as primeiras notas emitidas em todo o histórico do CNPJ da empresa.
COMPLIANCE CONTRA
Para fechar com a Kiara, a diretoria do Corinthians não seguiu a recomendação do compliance do clube. A averiguação foi solicitada pelo departamento jurídico após Marcelo Mariano, diretor administrativo, pedir a confecção de minuta do contrato. Uma curiosidade é que Marcelinho, como é conhecido o dirigente, usou um e-mail pessoal para estas conversas internas ao invés de se comunicar pelo e-mail institucional, que é controlado pelo servidor do clube, como fazem os demais funcionários.
O dossiê do compliance corintiano sobre a Kiara apontou seis bandeiras vermelhas, identificou que a empresa não tinha funcionários registrados e levantou riscos pelos fatos da empresa ser de pequeno porte, de baixo nível de atividade, de estrutura em local residencial e pelo contrato ter valores mensais superiores ao capital social da empresa.
SEGURANÇAS SEM LICENÇA
Na plataforma de controle da Polícia Federal, a Gazeta Esportiva confirmou que nenhum dos 24 funcionários indicados pela Kiara para prestar serviço ao Corinthians têm permissão para exercer a atividade como seguranças. A identidade destes funcionários será preservada nesta matéria.
Da lista de nomes, anexada ao contrato com o clube, foi possível constatar apenas um funcionário habilitado para fazer segurança de eventos e de patrimônios, mas não segurança pessoal. O sistema não reconheceu o CPF de outros três nomes e apontou que os 20 funcionários restantes da lista não estão regularizados com a PF e, portanto, não podem exercer tal atividade prometida no contrato.
À Gazeta, o Corinthians afirmou, em nota, o seguinte: “conforme documentação apresentada pela empresa Kiara, a mesma possui a respectiva autorização da Polícia Federal para atuar na vigilância patrimonial”.
A reportagem questionou se o clube fez as averiguações sobre a empresa e sobre os funcionários selecionados e também o motivo do contrato ter sido assinado mesmo depois da contraindicação do compliance, mas o Corinthians optou por não responder estas perguntas.
ALERTA E GOTA D’ÁGUA
A Gazeta Esportiva procurou por Leonardo Pantaleão, diretor jurídico do clube de 10 de junho até 30 de setembro, período que antecedeu o pedido de renúncia do legista. Em respostas por escrito, Pantaleão confirmou à reportagem que, diferentemente do que informou o Corinthians em nota oficial no dia 26 de junho, a Polícia Federal, avisou ao clube de que a Workserv “não detinha as autorizações necessárias para atuar no escopo no qual fora contratada”.
Ele também explicou que fez questionamentos adicionais sobre a Kiara Segurança Privada LTDA tão logo recebeu a solicitação para formular o contrato com a empresa.
“Após alguns dias, a diretoria administrativa retornou com respostas consideradas insuficientes para eliminar os riscos evidenciados pelo compliance”.
Perguntado sobre a averiguação dos funcionários que seriam utilizados pela empresa para a execução do serviço de segurança, Pantaleão lembrou que o contrato foi assinado após a sua saída, quando Vinícius Cascone, ex-secretário geral, assumiu o posto.
“Foi solicitado, pelo Departamento Jurídico, a apresentação de listagem com a qualificação completa das pessoas que seriam indicadas para tal prestação de serviços. A lista foi encaminhada e seria, ainda, objeto de minudente análise e pesquisa, ocasião em que renunciei ao cargo de Diretor de Negócios Jurídicos do clube e, a partir daquele momento, não tenho condições de informar o que fora desenvolvido em relação a tal apuração”, disse Pantaleão.
Em nota, o Corinthians se manifestou sobre o fato do contrato com a Kiara ter sido assinado exatamente no dia em que Cascone assumiu o departamento jurídico, dia seguinte à renúncia de Pantaleão.
“O diretor de negócios jurídicos Vinícius Cascone apenas formalizou a assinatura enquanto testemunha como de costume, haja vista que o respectivo contrato foi confeccionado na gestão diretor anterior”.
A pedido de Marcelo Mariano, o contrato foi desenvolvido pelo departamento jurídico e, segundo Leonardo Pantelão, não teve nenhum parecer definitivo dele devido aos levantamentos que ainda estavam sendo feitos, como, por exemplo, sobre os funcionários da Kiara. A pedido da Gazeta, o ex-diretor jurídico explicou quais os riscos o clube assume ao firmar contrato com uma empresa nestas condições.
“O clube pode ser penalizado por órgãos fiscalizadores, como o Ministério do Trabalho e Emprego, se for constatado que as empresas não estão cumprindo suas obrigações trabalhistas. Em casos de irregularidades trabalhistas, o clube pode ser responsabilizado solidariamente, isso significa que ele pode ser chamado a responder por dívidas trabalhistas que essas empresas tenham. Funcionários insatisfeitos ou que se sintam lesados, podem entrar com ações judiciais contra o Corinthians, o que pode gerar custos adicionais e desgaste de imagem. A associação com empresas irregulares pode afetar negativamente a reputação do clube, gerando descontentamento entre torcedores e patrocinadores”.
O caso com as empresas de segurança foi a gota d’água para Leonardo Pantaleão abdicar da liderança do departamento jurídico do Corinthians menos de quatro meses depois de ser anunciado pelo presidente Augusto Melo.
“A minha renúncia não foi motivada somente por um assunto pontual, mas como um reflexo de um padrão de desconforto que se acumulou pelo período em que estive da Diretoria Executiva. Esse contrato em particular, somado a outras situações que conflitavam com a minha visão de uma gestão transparente e eficaz, tanto na parte administrativa quanto financeira, gerou um ambiente que se tornou insustentável para a prática das minhas convicções”, concluiu.
MAIS EMPRESAS E RISCO
Nos últimos 10 meses, pelo menos 14 empresas prestaram serviços de segurança, vigilância e semelhantes ao Corinthians. A despesa com estes serviços já superou os R$ 10 milhões em cobranças feitas por notas fiscais, sendo que, no mínimo, 19 notas deste montante foram canceladas e representam R$ 1,3 milhão.
Das 14 empresas, segundo a plataforma de controle da Polícia Federal, apenas três estão regularizadas e aptas a operar neste momento. O site não reconheceu outras cinco e apontou seis delas como empresas que não estão adequadas e, portanto, são consideradas clandestinas.
Além da Verssat, da Workserv e da Kiara, uma das maiores despesas do Corinthians nesta área tem sido com a RF Segurança LTDA. De abril e outubro, o clube já teve um custo de, pelo menos, R$ 3 milhões com esta empresa.
Sem estas quatro empresas citadas, com as quais, em teoria, o clube tem ou teve, em algum momento, despesas fixas mensais, o Corinthians contratou, pelo menos, outros 65 serviços avulsos a um custo total de R$ 1,3 milhão em 2024.
Vale destacar que o Corinthians pode sofrer a interdição de todo e qualquer local em que alguma empresa não habilitada pela Polícia Federal esteja prestando serviço de segurança. Este eventual desdobramento pode fazer com que a Neo Química Arena, por exemplo, seja interditada em dias de jogos, a não ser que o clube coloque uma empresa regularizada para prestar o serviço no local.
“As despesas de segurança, vigilância e semelhantes foram devidamente orçadas, sendo que o que se buscou foi a regularização e formalização das atividades de serviços que eram prestadas no clube. O SCCP possui várias unidades, sejam elas PSJ, CT´s de base e profissional, Arena e segurança das equipes de diversas modalidades, sem contar eventos e outras atividades. Assim, diversas empresas prestam serviços de segurança e vigilância. Não cabe ao Corinthians fazer qualquer comentário sobre as questões internas das respectivas empresas, haja vista que fogem do escopo e do objeto dos serviços prestados. Em relação a empresa RF, a mesma possui contrato vigente de prestação de serviços”, comentou o clube, em nota.
CONSELHO DELIBERATIVO
A relação do Corinthians com as empresas de segurança tem sido investigada pelos órgãos internos do clube e foi pauta na última reunião do Conselho Deliberativo. A tensão sobre este tema fica ainda mais latente pela situação do presidente Augusto Melo, que está sob risco de ter um eventual impeachment dele votado pelos conselheiros ainda neste ano.
A Gazeta Esportiva procurou Romeu Tuma Júnior, presidente do Conselho Deliberativo, que preferiu não entrar em detalhes sobre os casos apresentados nesta matéria, mas se manifestou em nota enviada à reportagem.
“É lamentável que vazamentos e informações como essas que você me traz, continuem ocorrendo sem que a atual gestão tome qualquer tipo de providência para que não ocorram mais. E é ainda mais lamentável o tipo de informação em si, pois além de bastante graves, deveriam ser confidenciais, como estão sendo tratadas no âmbito do Conselho Deliberativo, tecnicamente e conforme nosso estatuto”, escreveu Tuma Jr.