Festa de todos: como o carnaval chegou ao Brasil e cativou até o imperador

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“O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.” Logo no primeiro parágrafo de seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, um dos mais importantes textos da literatura brasileira, o escritor Oswald de Andrade exalta a importância da festa mais popular do país, que contagia grande parte da população com uma explosão de alegria e transporta a cultura brasileira a todas as partes do mundo.
Apesar da grandiosidade e do gingado único que tornaram o evento parte essencial do próprio conceito de brasilidade, o carnaval não é uma festa genuinamente brasileira. A origem exata da folia é incerta e, para muitos, remete às celebrações similares que havia na Grécia Antiga, Egito e Roma, em que os exageros e a liberdade em todos os sentidos ditavam as regras das festanças.
Essa animação toda, conforme atesta a "Enciclopédia Barsa" em seu verbete sobre o tema, teria dado origem, séculos depois, aos carnavais em Veneza, Paris, Roma e outros importantes centros europeus.
É certo que o carnaval já existia na Antiguidade clássica e até mesmo na pré-clássica, com danças ruidosas, máscaras e a licenciosidade que se conservam até a época contemporânea”, diz trecho da obra.
No entanto, pesquisadores ressaltam que é preciso diferenciar os tipos de celebrações envolvidas.
O carnaval nos moldes e no calendário que conhecemos e brincamos hoje em dia, conforme explica o historiador Felipe Ferreira, coordenador do Centro de Referência do Carnaval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de "O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro" (Ediouro), teve origem de uma iniciativa da própria Igreja Católica.
“O carnaval surge na Idade Média como uma espécie de oposição à Quaresma. Não devemos confundir festas que têm ‘espírito carnavalesco’, ou ‘festas carnavalizadas’, com carnaval”, diz.
Segundo ele, tudo começou em 604, quando o papa Gregório I deliberou que, em um determinado período do ano, os fiéis católicos deveriam deixar de lado a vida mundana para se dedicar exclusivamente às questões espirituais, seguindo os preceitos do cristianismo.
O evento durava quarenta dias, em alusão ao período em que Jesus Cristo passou jejuando e orando no deserto. Daí o nome de Quaresma. O primeiro dia de Quaresma é a Quarta-feira de Cinzas, dado o costume, que até hoje perdura, de marcar com uma cruz a testa dos fiéis com as cinzas de uma fogueira, em sinal de penitência.
“A partir daí, estava decretado que durante os quarenta dias de privações os fiéis deveriam esquecer os prazeres da vida material e dedicar- -se à elevação do espírito. Ou seja, nada de festas, brincadeiras, namoros, bebedeiras ou comilanças nesses quarentas dias”, esclarece Ferreira.
O consumo de carne também era vetado durante a Quaresma, o que era um verdadeiro martírio para a população, cuja dieta era à base de carne de porco, frango, boi e caça.
Para aguentar firme a travessia de privações impostas pelo jejum, penitência e orações durante tantas semanas, começaram a surgir entre os católicos europeus nas aldeias e pequenas cidades muitas festas nos dias imediatamente anteriores à Quaresma.
Essas celebrações, com muita comida, bebida e danças, começaram a ser conhecidas como “carne vale” ou carnevale, que derivado do latim para o italiano quer dizer “adeus, carne” ou, em tradução livre, “adeus à carne”. “Ao criar a Quaresma, a Igreja Católica instituiu o carnaval”, resume o historiador André Diniz, especialista no tema e autor do Almanaque do Carnaval.
A relação entre a Igreja e os folguedos sempre foi de altos e baixos. Durante a Idade Média, muitos papas foram inimigos da “festa da carne”, mas, no século 15, o papa Paulo II se mostrou mais tolerante ao autorizar a Via Lata, área diante do seu palácio em Roma, para a celebração do carnaval romano, com desfiles, corridas, danças, brincadeiras.
O objetivo de Paulo II era manter certo domínio e promover um caráter mais ordeiro à festa, que degringolava ano após ano no quesito libertinagem e paganismo. Tanto é que o papa autorizou os primeiros bailes de máscaras, com músicas e danças mais tranquilas e refinadas, dando à celebração um caráter mais artístico e cultural do que mundano e libertino.
Diante do sucesso, os bailes de máscaras rapidamente se espalharam e conquistaram cidades como Paris e Veneza, que se tornaria mundialmente famosa pelo seu carnaval de máscaras.
A festa no Brasil
Por aqui, o carnaval chegou no período colonial com o entrudo, uma festiva herança portuguesa que consistia em jogar água, farinha, cal, ovos e “limões de cheiro” nas pessoas durante a festa, que tomava conta das ruas do Rio de Janeiro e outras cidades nos dias anteriores à Quaresma.
Segundas e terças antes de Cinzas são os dias próprios para o entrudo, mas pode começar uma semana antes do prazo”, observou, na época, o historiador inglês Henry Koster.
O entrudo muitas vezes era manifestado de forma violenta e não tinha nada de inocente, com as pessoas, não raro, extrapolando todos os limites do bom senso.
“Água e pós para cabelo são os ingredientes indicados para lançarem uns aos outros, mas, frequentemente, não guardam equilíbrio e tudo quanto se pode agarrar, esteja limpo ou sujo, é atirado, de todas as partes”, registrou Koster.
Os tais “limões de cheiro”, símbolo máximo do entrudo, não eram uma fruta, mas uma bola de cera ou bexiga animal recheada com uma mistura de água, perfume e, em muitos casos, líquidos menos inocentes, como urina.
Ao se espatifar na pessoa, a vítima tomava um banho de água suja que exalava todo tipo de fedentina e sujeira. Em diversos lugares, os participantes também aproveitavam a festa para resolver antigas diferenças pessoais e tirar satisfações no tapa, gerando brigas e confusões de todo tipo, e que tinham de ser resolvidas pela polícia.
Das ruas aos imperadores
Apesar da violência, o entrudo fazia parte do calendário festivo anual e tinha muitos adeptos e simpatizantes, inclusive na Corte. Registros históricos apontam que os imperadores d. Pedro I e seu filho, d. Pedro II, se divertiam com a brincadeira, inclusive dentro do Paço Imperial, e faziam uma certa vista grossa aos exageros cometidos pelos súditos nas ruas.
“Por mais que houvesse normas rígidas no patriarcalismo da sociedade colonial e imperial, o entrudo cativava a todos. Brincavam: o escravizado, o fazendeiro, os lavradores, o padre... até os imperadores Pedro I e Pedro II eram adeptos dos limões de cheiro e das farinhas”, atesta Diniz.
Outra herança carnavalesca portuguesa, essa bem mais tranquila, foi o zé-pereira. Tocadores de bumbos enormes que acompanhavam as procissões na região do Minho, em Portugal, os chamados zé--pereiras se espalharam pelo Rio de Janeiro no século 20.
“São os precursores do surdo de marcação utilizados até hoje pelas escolas de samba”, explica o historiador. Outro tipo de organização que também deixou muito das suas características nas atuais escolas de samba foram os ranchos. Eram como cordões mais organizados, com luxo, beleza e refino musical.
Eles apresentavam porta-estandarte, três mestres-salas e um instrumental com violões, cavaquinho, flautas e clarineta. Produziam uma música elaborada, que aproveitava o potencial melódico e harmônico da formação dos seus conjuntos e se consolidou no estilo conhecido como marcha-rancho. A partir de 1854, o entrudo foi proibido no Rio de Janeiro, por ordem da polícia.
A força da lei contra os distúrbios não adiantou muito. Mesmo enfraquecido, o entrudocontinuaria a ser realizado por muitos até ser substituído completamente por outras brincadeiras, como os desfiles, os bailes e os desfiles de carros.
“Com seu caráter transgressor, o entrudo era uma espécie de irmão mais velho do carnaval. Este, por sua vez, congregando sobretudo setores da elite e a própria família imperial, viveu seu apogeu já entre 1854 e 1871. Nessa época, foliões ganhavam as ruas, fazendo da festa um feriado nacional”, explica a historiadora Lilia Schwarcz.
Com o encolhimento do entrudo, o carnaval ganhou contornos mais civilizados, com os desfiles alegóricos, os blocos, os cordões, os bailes e os ranchos. Os cordões começaram a participar das brincadeiras nas ruas por volta de 1880, com grupos de pessoas fantasiadas sob um comando de um mestre munido de apito ao som de instrumentos musicais. “A primeira composição composta especificamente para o carnaval era uma marchinha para um cordão carnavalesco”, lembra Diniz.
A primeira marchinha
Em 1899, a maestrina Chiquinha Gonzaga, um dos principais nomes da música popular brasileira do começo do século 20, criou no Andaraí, bairro onde morava, a famosa "Ô Abre Alas", para o Cordão Carnavalesco Rosa de Ouro. Os blocos, mais comuns a partir da virada do século 20, eram formas mais organizadas do carnaval.
Entre os destaques que ganharam as ruas e se consolidaram como parte integrante do carnaval nas décadas seguintes estão o Cordão do Bola Preta (1918), o Bafo de Onça (1956) e o Cacique de Ramos (1961).

O primeiro desfile alegórico do Rio de Janeiro, segundo conta Lilia no livro "As Barbas do Imperador", ocorreu em 1855, quando uma comissão do Congresso das Sumidades Carnavalescas, do qual faziam parte personalidades como os escritores José de Alencar e Manuel Antonio de Almeida, organizou um festivo, porém comportado, desfile no Paço da Cidade, prestigiado pela própria Família Imperial, que assistiu a tudo de camarote a partir das janelas do palácio imperial.
Primeiros bailes
Nessa época, também surgiram os primeiros bailes fechados de carnaval. “Os bailes foram a forma utilizada pela elite para tentar acabar com o entrudo. Buscava-se civilizar o carnaval e moldá-lo aos padrões burgueses da época”, explica Ferreira. De fato, no começo a festa era bem mais comportada, inspirada nos costumes da França e com um repertório composto de polcas, valsas, modinhas e maxixes.
Os primeiros bailes de carnaval de salão que se têm notícia ocorreram em fevereiro de 1835, no Hotel D’Italia e no Café Neuville, ambos no Rio de Janeiro. Eram bailes de máscaras inspirados no carnaval de Veneza. No evento do Hotel D’Itália, os ingressos custavam 2 mil réis por casal.
Conforme anúncios nos jornais da época, a festa era elegante e parecia mais um encontro de Natal do que uma festa pagã, com direito a ceia à meia-noite, refrescos e gelo – grande atrativo para o calor da cidade em uma época que não existiam geladeiras modernas.
As máscaras só poderiam ser colocadas no interior do salão, já que eram proibidas de serem utilizadas na rua, por ordem da polícia, por conta dos distúrbios provocados pelo entrudo que, mesmo enfraquecido, resistiu até os primeiros anos do século 20.
Logo, surgiram novidades incorporadas pelas orquestras para animar os dançantes nos salões, como o charleston e o foxtrote. Mas os bailes carnavalescos só começaram a pegar fogo mesmo com o advento das famosas marchinhas, como Mamãe Eu Quero (1937), Allah- -la-ô (1941) e Máscara Negra (1967). “Diferente do frevo e do samba, gêneros marcados por seu caráter notadamente popular, a marchinha nasceu como um ritmo executado prioritariamente nos salões”, conta o autor de Almanaque do Carnaval.
O Baile de Gala do Theatro Municipal do Rio de Janeiro ficou conhecido durante décadas como o mais exclusivo do país. No figurino dos foliões, nada de bermudas ou chinelos. Criado em 1932, homens trajavam smokings e as mulheres vestidos longos para participarem da festa, conforme atestam registros da época.

A festa no Copacabana Palace, conhecido como Baile do Copa, é outra tradição do carnaval carioca. Criado em 1924 e realizado até hoje, o evento sempre atraiu celebridades do mundo todo, como o diretor de cinema norte-americano Orson Welles e a atriz francesa Brigitte Bardot, nos anos 1960.
Desfile carnavalesco
As reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro durante a primeira década do século 20 provocaram efeitos profundos no carnaval. O “bota-abaixo” de vielas, cortiços e ruas estreitas e a construção de novas e largas avenidas, como a Avenida Central, atual Rio Branco, abriram espaço para o corso carnavalesco – desfile de carros e automóveis particulares enfeitados e seus ocupantes fantasiados, que faziam enorme sucesso e atraíam multidões de todas as classes sociais.
Confetes, serpentinas e lança-perfume eram utilizados de forma abundante na interação entre os ocupantes dos carros e os pedestres, todos embalados por marchinhas e outras músicas. O corso também fazia sucesso em outras capitais, como São Paulo, onde os desfiles ocorriam nas avenidas Paulista e São João, e no “triângulo” de ruas do Centro (entre as ruas São Bento, Direita e 15 de Novembro) – o ponto central da vida social e econômica na Pauliceia.
“No ‘triângulo’ os desfiles dos clubes carnavalescos em carros alegóricos eram o centro da pândega, enquanto na Avenida (Paulista) o povo era mantido nas calçadas para assistir, como plateia, às batalhas de serpentina, confete e lança- -perfume, no corso de carros refinados que rolavam pelo asfalto em fila quadrúpla”,registrou Nicolau Sevcenko em "Orfeu Extático na Metrópole" (editora Companhia das Letras).
Os reflexos também foram sentidos na indústria e na economia, de acordo com a historiadora Mary Del Priore, autora do livro "Histórias da Gente Brasileira" (Editora Leya).
“Confetes e serpentinas, já usados nas batalhas de confetes desde os anos 1910, passaram a figurar na produção das indústrias de papel: a partir de 1930, cerca de 200 toneladas de confete e 600 mil pacotes de serpentina por ano.”
Reduto de samba
As transformações urbanísticas promovidas no Rio de Janeiro pelo prefeito Pereira Passos e o presidente Rodrigues Alves também empurraram, cada vez mais, a população mais pobre da então capital federal para os morros e rebarbas da cidade.

Foi justamente nos morros que começou a ser fomentado de forma intensa o ritmo que dominaria o carnaval brasileiro nas décadas seguintes: o samba. A composição "Pelo Telefone", de Donga e Mauro de Almeida, que é considerado o primeiro samba gravado a fazer sucesso, em 1917, tinha o rótulo de samba carnavalesco. A Praça Onze, por sua vez, foi o primeiro grande reduto mitificado dos amantes do samba e do carnaval.
“A expulsão dos mestiços e negros empobrecidos do centro do Rio, em consequência das reformas de Pereira Passos, deslocou para o entorno da Praça Onze as festividades do carnaval carioca, sobretudo os encontros dos luxuosos ranchos e das incipientes escolas de samba”, afirma Diniz.
Em 1944, a Praça Onze foi demolida para a construção da Avenida Presidente Vargas. A praça acabou, mas o espírito carnavalesco permaneceu na região. A nova avenida, parte integrante do novo modelo urbano do Rio de Janeiro, abrigaria os desfiles das escolas de samba até a construção do Sambódromo, na Avenida Marquês de Sapucaí, em 1984.
A trajetória das agremiações do samba começou com a “Deixa Falar”, fundada em 1928 no bairro de Estácio e considerada a primeira escola de samba nos moldes que conhecemos.
O nome “escola”, aliás, segundo os fundadores da Deixa Falar, foi agregado pelo fato de a sede ficar próxima a uma escola de fato, um colégio normal, no Largo do Estácio. O termo pegou e outras agremiações que surgiram depois, como a Mangueira e a Portela, seguiriam a tradição de serem chamadas de escolas.
O mesmo ocorreria em São Paulo, cujas pioneiras foram a Primeira de São Paulo, no bairro da Pompeia, e a Lavapés, na região do Cambuci, ambas fundadas na década de 1930. No caso da Lavapés, o destaque recai sobre a presidente fundadora, madrinha Eunice, a primeira mulher a criar e comandar uma escola de samba no país.
As outras escolas paulistanas mais tradicionais, como Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, nasceram como blocos e só seriam oficializadas como escolas um bom tempo depois, nas décadas de 1950 e 1960.
Os primeiros desfiles oficiais das agremiações paulistanas ocorriam na Avenida São João, no final dos anos 1960, e posteriormente foram transferidos para a Avenida Tiradentes, onde seriam realizados até a inauguração do Sambódromo do Anhembi, em 1990.
Atualmente, há diversas formas de brincar carnaval, seja nos milhares de blocos espalhados pelas ruas das grandes e pequenas cidades, nos luxuosos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo, nos bailes de salão ou mesmo nas brincadeiras entre a família e amigos.
O importante é brincar nos únicos dias do ano em que empregados e patrões, ricos e pobres e todas as pessoas dividem o mesmo espaço de forma igualitária e democrática. Conforme definiu Goethe, ainda no século 18, ao visitar Roma: “O carnaval não é uma festa que alguém ofereça; é uma festa que o povo oferece a si mesmo”.


