GTA Trilogy: The Definitive Edition está longe de ser definitivo
Tecmundo
O legado que uma franquia como GTA carrega acaba impondo, a seus criadores, uma involuntária responsabilidade. Fãs, indústria, varejo, analistas, youtubers e qualquer ser humano que jogue videogame acabam compondo um grupo que pressiona uma empresa a entregar excelência sempre. A Rockstar convive com as heranças que criou.
Como um fã e colecionador de GTA, dói na alma, mais que no coração, ver minha série de jogos favorita da vida receber esse tratamento ao ter sua principal trilogia remasterizada às plataformas atuais.
A Rockstar tirou da cartola a Definitive Edition de GTA 3, Vice City e San Andreas após uma onda de rumores que há anos remontam games que definiram uma geração inteira de consoles e de jogadores, em jornadas que ditaram tendências e criaram importantes paradigmas de mundo aberto na indústria. O 3 como máfia, o Vice City como cartel e o San Andreas como gangue de rua.
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O intervalo foi milagrosamente curto entre o anúncio e o lançamento, como raramente se vê na cultura do hype: a coletânea foi revelada no início de outubro para ser lançada em novembro, apenas um mês depois, sob a batuta do estúdio Grove Street Games, que tem um vasto histórico em portar jogos a dispositivos móveis, inclusive os referidos GTAs. É aqui, inclusive, que os sinais da perdição começam a aparecer, deixando uma pergunta no ar: há tempo para o prometido resgate?
Confira também nossa análise em vídeo:
A bagunça de conceitos... e pouco importa
Remasterização, remake, reboot, reimaginação, releitura: não estamos aqui agora para necessariamente debater os conceitos de cada um, que de certa forma acabaram se banalizando ao longo dos anos, com o volume de adaptações que temos no mercado e as inúmeras discussões inócuas em torno do tema, e sim para falar sobre algumas decisões de design que o time de desenvolvimento tomou.
A começar pela notória modelagem facial, que ocupou a maior fatia das discussões só pelos trailers de anúncio, com bonecos aprisionados em filtros de Instagram e até chamados de “minicraques” por alguns aqui no Brasil, em função da cabeça caricata e das escolhas disformes, sem o charme de outrora.
GTA 3 parece ser o menos castigado nessa santa trindade: Claude mantém seu semblante discreto, com barba por fazer e rosto retangular, topete de gel dos anos 90 e biquinho de emburrado.
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Tommy Vercetti, de GTA Vice City, por sua vez, está mais para boneco de posto, com braços flácidos e rosto inofensivo, sem o aspecto sisudo do original, de 2002. Esse personagem, dublado pelo ator Ray Liotta ao tom do filme Os Bons Companheiros, parece um vendedor de sorvete (todo respeito a essa profissão, mas ele deveria se assemelhar a um chefão de cartel).
O célebre CJ, amado e cultuado pelos fãs, ficou todo botocado, vítima de uma desmedida e desnecessária cirurgia plástica. Como o personagem pode ser customizado em mecânicas de um RPG light, o botox só aumenta.
As atualizações são capazes de consertar esse tipo de coisa? Não por completo, mas através de remendos, como aconteceu com nosso querido barbeiro de San Andreas, que voltou a ser um aposentado Morgan Freeman (ou algo perto disso) após um enorme patch de correção.
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Cirurgia facial e chuva de “meteoritos”
O paradoxo da questão é: os modelos faciais não são exatamente feios se observados isoladamente, mas sim esquisitos quando comparados aos originais, dando aquela estranha sensação de vazio a quem joga – é como se a Definitive Edition não ficasse nem lá nem cá, é remaster e não é, estando localizada num incômodo purgatório dos 9 círculos do Inferno de Dante, indecisa com seu destino.
Os cenários, por sua vez, representam o salvo-conduto dessa coletânea; existe um mínimo de profundidade nas cidades. Ruas, paredes e montanhas têm “tessellation”, isto é, geometria própria aplicada em cima de conteúdo existente, com riscos e marcas em alto relevo, além de alguns shaders bem-vindos como soluções para reflexos e sombras, especialmente nas poças que ficam espalhadas após temporais.
Aliás, eis outra assombração dessa trilogia: as chuvas. Em vez do estúdio usar uma solução simples para entregar o básico, criaram partículas enormes para as gotas, que parecem meteoritos caindo do céu, ou estrelas cadentes rebeldes se vingando dos que duvidavam de sua existência ou, ainda, enormes canivetes que quase fazem jus ao ditado que carregam.
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Esses enormes rabiscos brancos dão uma estética superficial e artificial à chuva, em vez de torná-la um elemento natural da vida do mundo aberto, e cobram o preço em performance, que cai vertiginosamente. Além disso, as gotas em linha branca ignoram algumas pedras dos cenários, que se transformam em objetos transparentes, e chovem em locais cobertos.
Performance vs. fidelidade e quedas
A trilogia permite optar pelo tradicional modo fidelidade, que deixa os jogos em 30 fps e prioriza resolução, ou escolher a performance, que sobe a taxa de quadros para 60 por segundo, com quedas. Além da chuva, explosões, congestionamento de carros e de NPCs na tela sobrecarregam o desempenho.
A mira oferece três alternativas: controle livre, assistido ou “clássico”, em que a retícula sempre estará travada em alguém. Ainda que tenha sido aprimorada, ela mostra as ferrugens do tempo e pode ter comportamento indesejado ao apontar para o seu alvo.
Notam-se também paredes invisíveis no lugar de obstáculos que deveriam estar presentes em texturas 3D visíveis na tela, como grades, cones e afins, bem como bugs que podem impedir o progresso em determinadas missões, especialmente num certo objetivo de GTA Vice City, que foi corrigido em recente atualização. No entanto, a regra é clara: devemos ser transparentes e nos pautar em qualquer jogo tal como foi lançado, não sob a promessa do que será.
Sim, existe beleza também
Onde há tempestade há espaço para sol também, e GTA The Trilogy: The Definitive Edition apresenta jogos mais bonitos, com luz e reflexos minimamente trabalhados, explosões vistosas, carros esmaltados, uma bem-vinda roda de armas e de estações de rádio (ainda que, infelizmente, algumas músicas tenham sido retiradas por questões relacionadas a direitos autorais).
As missões clássicas estão ali, bem como as memórias, as canções inesquecíveis, as histórias que marcaram época e que fazem parte de nossas vidas. Tudo isso existe como você conheceu e, sim, é um conteúdo jogável, absorvível e apreciável, dadas as devidas proporções e ressalvas supracitadas.
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Veredito
Fãs que estavam carentes para botar a mão nesses GTAs retocados e com troféus de platina/1.000g ao menos agora têm essa alternativa, embora a nossa humilde recomendação é esperar que as atualizações surtam efeito com o tempo.
A Grove Street Games entregou, basicamente, um trabalho incompleto, cheio de vestígios dos ports para celulares, e isso pode aprisionar essa trilogia por um longo período, até que, talvez, consiga se libertar de suas próprias amarras.
Esta é uma análise puramente técnica, porque se eu fosse colocar meu coração aqui e doar minha alma, é claro que a nota poderia ser maior, afinal, estamos falando de três jogos que revolucionaram a indústria.
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Os bons momentos seguem presentes, divertidíssimos como sempre e capazes de me fazer encostar o que quer que eu estivesse jogando para voltar a me deliciar pelas ruas de Liberty City, Vice City, Los Santos, San Fierro e Las Venturas, revivendo as grandes memórias de outrora ao som dos anos 80 e 90, as melhores décadas da história, responsáveis por construir meu gosto musical, meu perfil como gamer e meu apreço pela emblemática estética que definiu nossa linha do tempo.
Mas nós precisamos ser técnicos e honestos o suficiente para dizer que há um longo trabalho de atualizações pela frente até que esses jogos encontrem uma forma mais satisfatória. Por enquanto, os originais seguem soberanos.