Por que Sinéad O'Connor boicotou o Grammy?
Aventuras Na História
No início da década de 1990, poucas mensagens eram tão impactantes no mundo da música como as da cantora irlandesa Sinéad O'Connor.
Diferente de outras cantoras do mainstream norte-americano na época, não ostentava um corpo dos sonhos acompanhado de longas madeixas; do contrário, raspava o cabelo e usava roupas confortáveis que nada a sexualizava.
Sua principal arma eram as composições e o vocal polido de longo alcance, que se somavam em músicas que edificaram seu álbum 'I Do Not Want What I Haven’t Got', no ano de 1990.
Em uma das faixas, no entanto, era uma composição de Prince responsável por amplificar a voz perfeita pelo mundo, com 'Nothing Compares 2 U' alcançando o primeiro lugar da Billboard Hot 100 em abril do mesmo ano.
Sinéad aproveitou o palco para protestar a favor de seus ideais; entrou em uma rixa pública com a Madonna ao apoiar o feminismo 'sem tirar a roupa', rasgou uma fotografia do Papa João Paulo II ao vivo enquanto participava de um programa de TV em rede nacional e, principalmente, sobre os discursos e métodos abusivos da indústria cultural. E se engana quem pensa que as polêmicas ficaram no passado.
No ano de 2013, a cantora norte-americana Miley Cyrus escandalizou o mundo ao se libertar dos cadeados da Disney. Foi com o lançamento do polêmico clipe da canção Wrecking Ball, que apresenta fortes inspirações da carreira de Sinéad, que a veterna se irritou e mirou Cyrus numa carta aberta publicada através do The Guardian.
“A indústria não liga para você, ou para qualquer uma de nós. Eles vão prostitui-la por tudo que você vale e facilmente vão fazer você pensar que isso era o que você queria”, disse a jovem cantora dona dos sucessos Party In The Usa e Midnight Sky. “E quando você acabar em uma clínica de reabilitação por ter sido prostituída, 'eles' estarão em seus iates em Antígua, que compraram com a venda de seu corpo, e você vai se sentir muito sozinha”.
Cyrus não gostou das críticas e rebateu comparando Sinéad à atriz Amanda Bynes e relembrando o polêmico episódio em que ela rasgou a foto do Papa.
Sinéad em apresentação acústica durante o ano de 2008 / Crédito: Flickr/haagsuitburo/CC 2.0
Sinéad x Grammy
De acordo com a organização da premiação, a cantora já havia sido indicada dois anos antes como Melhor Performance Vocal Feminina de Rock por seu álbum de estreia, 'The Lion And The Cobra', sendo derrotada.
No auge com o disco seguinte e sabendo da recepção acadêmica que teria no Grammy, a principal premiação musical da indústria, decidiu preparar uma surpresa.
Na trigésima terceira edição do evento, a artista foi indicada em quatro categorias, dentre elas a de Melhor Videoclipe, Melhor Performance Vocal Feminina de Pop, Melhor Performance de Música Alternativa e a mais importante da noite, Gravação do Ano, sendo cotada como favorita para todas elas.
Porém, horas antes da cerimônia, O'Connor soltou uma nota oficial destinada a veículos populares da imprensa explicando que não iria para a premiação, nem mesmo se ganhasse algum troféu, como informou o jornal Los Angeles Times na época. A justificativa seria a transformação de uma condecoração pela arte em um evento que valorizava o sucesso comercial.
"Como artistas, acredito que nossa função é expressar os sentimentos da raça humana — sempre falar a verdade e nunca mantê-la escondida, embora estejamos operando em um mundo que não gosta do som da verdade. [...] Eles respeitam principalmente o ganho material, pois esse é o principal motivo de sua existência. E eles criaram um grande respeito entre os artistas pelo ganho material — honrando-nos e exaltando-nos quando o alcançamos, ignorando em grande parte aqueles de nós que não o fizeram”, escreveu a cantora.
Vernon Reid discursa em apoio a Sinéad O'Connor na noite do Grammy / Créditos: Divulgação/YouTube/Grammy's
Na noite do evento
A decisão repercutiu na organização do Grammy como um direito de expressão livre que não deveria reverberar em punições, como explicou o presidente da academia de votação, Michael Greene, ao Tampa Bay Times: “Aplaudimos que Sinéad se preocupe tanto com essas questões e acreditamos que suas convicções apenas aumentam a seriedade de seu trabalho. Mas ela pode estar equivocada”.
Mais tarde, Sinéad ainda foi a vencedora como Melhor Performance de Música Alternativa, desbancando Kate Bush na estreia da categoria — contudo, não apareceu para buscar o troféu, sendo a primeira a recusar um Grammy na história da premiação.
Em solidariedade ao ato, o lendário guitarrista do Living Colour, Vernon Reid, aceitou o prêmio de Melhor Performance de Hard Rock com uma estampa da cantora em sua camiseta: “A NARAS [conselho responsável pelas indicações e premiações do evento] não dita meu código de vestimenta”, disse ao Washington Post.