Opinião: Mais do que um filme de terror, 'Rua do Medo', da Netflix, escancara preconceitos históricos
Aventuras Na História
Paixão adolescente, suspense, possessões demoníacas e, claro, muitos mistérios são alguns dos assuntos apresentados na mais nova trilogia ‘Rua do Medo’, lançada no início deste mês na Netflix.
Dividida em três partes, sendo elas ‘Rua do Medo Parte 1: 1994’, ‘Rua do Medo Parte 2: 1978’ e ‘Rua do Medo Parte 3: 1666’, a produção conta com grande elenco e vem sendo amplamente repercutida nas redes sociais.
Baseada nos livros do aclamado escritor R.L. Stine, a trilogia acompanha a saga de um grupo de adolescentes que moram em uma cidade repleta de assassinatos misteriosos. Na produção, reza a lenda, que uma bruxa teria amaldiçoado a região, em 1666, motivo que explicaria os altos índices de criminalidade.
Caro leitor, a partir de agora algumas análises sobre a produção podem conter alguns SPOILERS.
Quebra de padrões
Fugindo dos padrões heteronormativos, a produção conta com o protagonismo de um casal lésbico: Sam (Olivia Scott Welch) e Deena (Kiana Madeira). Nas primeiras cenas de ‘Rua do Medo Parte 1: 1994’, é possível perceber a paixão avassaladora das personagens, que enfrentam todos os obstáculos possíveis para ficarem juntas.
O fato da produção apostar em um romance LGBTQIA+ é altamente simbólico, uma vez que a maioria dos filmes, ainda hoje, são majoritariamente representados por casais heterossexuais. Com direção de Leigh Janiak, a trama cumpre esse papel de forma fluída e brilhante.
No decorrer da trilogia, os telespectadores irão se deparar com um enredo sobrenatural. Todavia, mais do que um filme de terror, ‘Rua do Medo’ escancara preconceitos históricos, como misoginia, patriarcado, LGBTfobia e muito mais.
Reflexo histórico
A saga gira em torno de uma lenda que assombra a cidade de Shadyside, conhecida como a ‘capital dos assassinatos’, conforme é mencionado em diversos momentos da produção. Segundo as crenças populares, a região seria amaldiçoada por Sarah Fier (Elizabeth Scopel), que em 1666 teria sido morta sob acusação de bruxaria.
No primeiro filme, Sam descobre onde os restos mortais da suposta bruxa estão enterrados e a partir disso, ela passa a ser perseguida por espíritos demoníacos. Deena, por sua vez, traça uma luta contra o tempo para proteger a amada, desvendando segredos profundos da insólita cidade.
Em 'Rua do Medo Parte 3: 1666’ finalmente é revelado que Sarah Fier foi vítima do fundamentalismo religioso da época. A jovem teria vivido uma paixão avassaladora com outra mulher. Contudo, após uma série de eventos aterrorizarem a antiga colônia, ela foi condenada à morte, sendo enforcada injustamente diante de todo povoado.
A história contada por homens
Coincidência — ou não — o começo de tudo se passa em 1666, lembrando a brutal caça às bruxas em Salém, entre 1693 e 1694. Ao longo da história, milhares de mulheres foram torturadas e condenadas à morte.
Hoje em dia, sabe-se que muitas das perseguições e mortes foram principalmente motivadas pelo fundamentalismo religioso. Muitas foram acusadas de bruxaria, por simplesmente não estarem dentro dos padrões de uma sociedade patriarcal e retrógrada. Em a 'Rua do Medo’, tal fato fica evidente.
A representação do mundo é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta", disse Simone de Beauvoir.
Assim como menciona a teórica social francesa, Simone de Beauvoir, a história foi escrita principalmente pelo olhar masculino, muito pela influência do Ocidente e da Bíblia. Tal argumento, por exemplo, explica o porquê de tantas mulheres terem suas histórias deturpadas.
O mito do príncipe encantado
No terceiro filme, descobre-se que o responsável por invocar o diabo, na verdade foi um homem branco cis, que em nenhum momento levantou suspeitas, dada a sua posição de privilégio. Por outro lado, Sarah Fier, que não era uma bruxa, teve sua vida destruída, foi silenciada e submetida a um trágico destino — não muito diferente das ‘Bruxas de Salém’ e tantas outras mulheres vítimas do sistema feminicida.
O mito do príncipe encantado é, ainda, algo muito presente no filme. Por exemplo, em ‘Rua do Medo Parte 2: 1978’, Ziggy Berman (Sadie Sink e Gillian Jacobs) é salva por Nick Goode (Ted Sutherland e Ashley Zukerman), sua grande paixão da adolescência. Contudo, na terceira parte, descobre-se que o rapaz na verdade é o herdeiro do homem que lançou a maldição em Shadyside.
Nick, por sua vez, continuou os trabalhos ocultos e sobrenaturais do seu ancestral. Em certos momentos, ele chega a dizer a Deena que nunca vão acreditar nela. Tal fato mostra, que ainda hoje, as mulheres têm seus gritos silenciados e palavras questionadas, sendo mais um efeito colateral do patriarcado.
Além disso, a família Goode amaldiçoou a cidade de Shadyside para ter sucesso no novo lar construído por eles, a promissora cidade de Sunnyvale. Fazendo um paralelo com a realidade, a produção de Leigh Janiak faz uma crítica direta à ganância humana.
Moral da história
Para muitas pessoas, ‘Rua do Medo’ é só mais um filme de terror, protagonizado por adolescentes que são perseguidos por forças sobrenaturais. Contudo, se nos despirmos de nossas amarras sociais, podemos identificar as intrínsecas questões sociais presentes na trilogia.
O grande questionamento aqui é: quantas mulheres foram mortas injustamente por 'bruxaria'? Será que não está na hora da sociedade revisar a história contada predominantemente por homens?
Estas e outras problemáticas sociais compõe com maestria o enredo do novo lançamento da Netflix. E, como em uma epifania, pode levar o telespectador a uma profunda análise histórica e pessoal.
**A análise não representa, necessariamente, a opinião do site Aventuras na História.
+Assista ao trailer oficial da trilogia de 'Rua do Medo':