Um rei no Brasil Império: Como era a vida dos fazendeiros no Vale do Paraíba
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No primeiro período da expansão cafeeira, o movimento de investimento em terra e cativos para trabalhar na lavoura de café foi intenso. O viajante e naturalista Saint-Hilaire ao passar pelo Vale da Paraíba, em 1822, reproduziu um diálogo com um residente na área, sobre o emprego dos lucros com o ouro verde.
Perguntado sobre o destino do dinheiro, o interlocutor respondeu: “O senhor pode ver que não é construindo boas casas e mobiliando-as. Comem arroz e feijão. Vestuário também lhes custa pouco e nada gastam com a educação dos filhos, que se entorpecem na ignorância, são inteiramente alheios aos prazeres da convivência [...] é, pois, comprando negros que gastam toda a renda”.
De fato, esses eram tempos cujo lema era enriquecer. E a marca, a rusticidade. A civilidade ainda não tinha se instalado entre boa parte dos fazendeiros. Boas maneiras, nem pensar. O hábito de estar mal ou pouco vestido era generalizado até na hora das refeições: tiravam-se sapatos, meias e “peças que o calor tornasse opressivas e, nalguns casos, guardando apenas o traje que a decência requer”, reportou o inglês John Luccok. Quando as mulheres estavam presentes, guardavam um pouco mais de decoro.
A vida era marcada por horários rígidos. Em suas memórias, o Visconde de Araxá, Domiciano Leite Ribeiro, falou dos costumes dos fazendeiros da região. Levantavam-se com as galinhas e entravam logo na labutação doméstica até o escurecer.
“Almoçavam às oito da manhã, jantavam à uma da tarde, à noite rezavam o terço e metiam-se logo na cama depois de tomado o competente banho.” A maior parte, julgando insuficientes as três comidas, fazia outra às onze e merendava antes do terço.
Como era o banho? Tomava-se o banho de sopapo, em gamelas ou tinas, ou, no melhor dos casos, em bacias de folhas-de-flandres. Quando a fazenda dava para uma estrada, um pouso e armazém para os tropeiros e viajantes de passagem também se fazia necessário. Na primeira metade do século 19, a importância das tropas de muares, para o transporte de grãos até o litoral, era fundamental.
Cada fazendeiro tinha seu fornecedor. Certo Joaquim Cardoso, por exemplo, era o do Barão de Vassouras, Francisco José Teixeira Leite. Ele trazia muares de Sorocaba. O preço variava entre 40 mil e 50 mil réis, valendo as ruanas um pouco mais: $ 60.000.
Alguns fazendeiros criavam-nas também em suas terras, ou compravam-nas do inglês George Marsh, instalado na Serra dos Órgãos. As dificuldades que antes tiveram tido os mineradores, tinham agora os lavradores de café, porque entre eles e os portos de embarque, as fazendas e a Corte, havia a serra e seus íngremes e seus caminhos.
Na correspondência a seu irmão, o Barão de Vassouras se queixava: “É o defeito destas paragens já tão longe [...] O que estraga é a lonjura por uns caminhos, onde muita besta de sela e de cangalha tem quebrado as pernas e o pescoço”.
Em 1860, o viajante português Augusto Emílio Zaluar observou as primeiras mudanças no Vale do Paraíba: “Os grandes proprietários de terrenos, deixando de frequentar os povoados, e reconcentrando-se em suas fazendas, que são os verdadeiros castelos feudais de nosso tempo, fazem convergir aí toda a vida, que reflui das povoações para essas moradas ostentosas onde, muitas vezes, o luxo e a riqueza disputam primazia com os palácios da capital”.
Dom Pedro I percorreu o Vale em 1822. Só em 1878 seu filho faria o mesmo percurso. E aí encontrou tudo mudado. De Vassouras, escreveu à imperatriz, Dona Teresa Cristina, entusiasmado com as festas às quais compareceu. Mulheres bem-vestidas, o som das valsas, a imponência das missas, tudo embalou a farta distribuição de comendas, honrarias e brasões que deu origem aos “barões do café”.
A suave paisagem se enchia, então, de novas construções. Fazendas se instalavam ou aprimoravam: a Bocaina, a do Resgate, a Boavista, a das Antinhas, da Olaria, entre outras. Estradas vicinais cortavam a região. As cidades que antes pontuavam os caminhos ganhavam visibilidade.
A necessidade de transporte ferroviário que viesse dar escoamento ao aumento crescente da produção de café se materializou na construção de linhas férreas. A difícil conquista da serra foi vencida desde 1863. Os trilhos chegaram sucessivamente, em 1863, a Barra do Piraí, em 1871, a Barra Mansa e, nos últimos anos do Império, a Cachoeira, de onde partia a Estrada Norte de São Paulo. Ápice da modernidade, o chiado das locomotivas passou a cortar as noites do Vale.
Mary del Priore é Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de "Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil".