78 anos da libertação de Auschwitz: Como o Terceiro Reich nasceu
Aventuras Na História
Em 28 de maio de 1933, o médico Karl Wesen e seu aluno Jürgen Ernst sentaram em um bar para tomar café na cidade alemã de Würzburg. Ao ver que o judeu Adam Golom e sua amiga “ariana” Helena Valentin conversavam de forma “provocadora” na mesa ao lado, eles perseguiram e esbofetearam o casal na rua. Depois os denunciaram à Gestapo, a polícia secreta do Reich, por desonra racial.
Naquele mesmo ano, o pediatra Erich Hässler recebeu uma oferta tentadora: virar chefe do Hospital Infantil de Leipzig. Bastava ocupar o lugar de Siegfried Rosenbaum — expulso da clínica por ser judeu. Hässler aceitou na hora.
Em 1941, já com a Alemanha em guerra, a aposentada Helene Pfaf denunciou o comerciante Ludwig Hell por vender aguardente — um produto escasso — a uma judia em Miltenberg. Hell sofreu uma advertência e a judia, Elizabeth Mannheimer, foi confinada em um lar de anciãos.
Histórias como essas ajudam a entender que o nazismo não se restringiu a meia dúzia de líderes insanos. “Existe um amplo consenso entre historiadores de que a ditadura nazista se baseou no apoio ativo de numerosos ‘alemães comuns’, que não haviam sido membros do Partido Nazista antes de 1933”, diz Martin A. Ruehl, professor de pensamento alemão na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
“Hitler foi um ditador carismático que desfrutou de enorme popularidade entre o povo alemão, pelo menos até a Batalha de Stalingrado, no inverno de 1942.” Claro que houve coerção durante o nazismo, mas também existiu um amplo consenso.
Os alemães comuns estavam felizes com o führer (a palavra alemã para líder). Ele domou a inflação, restaurou a ordem, fez o país crescer e nutriu a esperança de que a Alemanha voltasse aos tempos gloriosos do império.
A ideia de uma Volksgemeinschaft (‘comunidade nacional’), embora nunca totalmente realizada, deu a muitos alemães uma sensação de recomeço, de ser parte de uma sociedade menos dividida, de uma Alemanha melhor e mais forte”, afirma Ruehl.
“E as políticas de bem-estar, geralmente financiadas com dinheiro tirado de judeus alemães, foram importantes para isso.” Nesta reportagem, você vai ver como os nazistas do Terceiro Reich convenceram os alemães a segui-los na paz e depois na guerra — mesmo à custa de atrocidades.
Fase 1: Indignação
Nos anos 1920, o Partido Nazista era a agrupação mais virulenta da extrema direita alemã. E também uma das menos expressivas. Em 1928, os nazistas conseguiram só 12 cadeiras (3% dos votos) no Parlamento (Reichstag). No entanto, em 1930 eles conquistaram 107 cadeiras e 6,5 milhões de votos, tornando-se o segundo maior partido do país atrás dos sociais-democratas.
Em julho de 1932, já eram de longe o mais popular, com 230 assentos e 13,4 milhões de votos (37%). “Mas, entre os milhões que votaram em Hitler, havia muitos, talvez a maioria, que não votaram pelo pacote da ideologia nazista, que incluía antissemitismo, expansionismo, higiene racial e hostilidade à democracia e à cultura moderna. O voto de 1932 foi acima de tudo um voto-protesto”, diz o historiador britânico Richard J. Evans na trilogia 'O Terceiro Reich'.
O povo revelou nas urnas o repúdio que sentia pela República de Weimar (1919-1933) — que substituiu o Império Alemão após a Primeira Guerra. Esse breve período democrático havia sido marcado pelo caos e pela violência. Em 1932, um em cada três alemães estava desempregado. Assim, os eleitores castigaram os principais partidos da república, como o Social-Democrata e o Centro Católico.
Acima de tudo, os alemães culparam os políticos por aceitar as condições do Tratado de Versalhes. Pelo acordo, a Alemanha perdeu 13% do território e 10% da população, todas as colônias, 75% das reservas de ferro e 26% das de carvão. O país teve que destruir 15 mil aviões e 6 milhões de fuzis. A força aérea foi abolida, o Estado-Maior, dissolvido e o Exército, reduzido a 100 mil homens.
As condições de paz, embora mais brandas do que a Alemanha planejava impor aos inimigos em caso de vitória, causaram profundo ressentimento em quase todos os alemães”, diz Evans.
A guerra terminou de forma ambígua: a Alemanha pediu o armistício com o Exército quase intacto. Daí a profunda indignação dos alemães quando souberam que ainda teriam de pagar reparações pelos danos do confronto. Como nenhum político queria subir impostos para isso, o jeito foi imprimir moeda. A inflação disparou.
Segundo Evans, o valor do dólar pulou de 4 marcos em 1913 para 4 trilhões (4 seguido de 12 zeros) de marcos em dezembro de 1923. Com o crack da bolsa de Nova York, em 1929, a Alemanha perdeu o rumo. Hitler soube tirar proveito disso.
O Partido Nazista prometeu uma revisão do Tratado de Versalhes e a destruição de Weimar de uma forma mais radical que qualquer outro partido, diz Ruehl.
“As várias crises econômicas levaram água para o moinho dos nazistas ao minar a confiança da Mittelstand (baixa classe média) no sistema político, e a Mittelstand perfazia o núcleo do eleitorado nazista.” Os desempregados, até então fiéis aos comunistas, também passaram a votar em Hitler e engrossaram as filas da SA, a milícia do partido.
Fase 2: Convencimento
Os nazistas perderam 2 milhões de votos na eleição de novembro de 1932, mas ainda eram a principal força no Parlamento. Acuado, o presidente conservador Paul von Hindenburg nomeou Hitler chanceler em 30 de janeiro de 1933. Achava que assim controlaria o führer e, de quebra, conteria o avanço do comunismo. Errou feio.
Hitler se aproximou do Exército, conquistou a confiança dos industriais e culpou os comunistas por um incêndio no Reichstag. Ante o temor de uma nova revolução, conseguiu que Hindenburg firmasse um decreto que suprimia as liberdades individuais e punia com a morte a alteração da ordem pública. Em março, graças a uma aliança com os nacionalistas, Hitler teve o aval do Parlamento para governar com plenos poderes.
E assim, usando meios constitucionais — decretos, leis e plebiscitos —, os nazistas dissolveram os outros partidos e instalaram uma ditadura. O golpe foi selado em 1934, quando a Gestapo e o esquadrão de elite SS lançaram uma guerra interna contra a SA, que já contava com 2,9 milhões de membros e ameaçava sair das rédeas de Hitler.
Naquele ano, as organizações nazistas já haviam penetrado em toda a sociedade, entre elas as Juventudes Hitlerianas, a Liga de Estudantes, a Liga de Mulheres Alemãs e a Frente do Trabalho, que absorveu os sindicatos. Por meio desse processo de Gleichschaltung (“coordenação”), os nazistas queriam controlar cada aspecto da vida alemã. E conseguiram. A população começou a ver a ditadura como desejável e legítima.
A brutalidade de Hitler contra todo aquele que ousasse tocar uma mulher numa rua escura lhe rendeu um grande respeito por parte de muitas mulheres”, diz o historiador canadense Robert Gellately.
“Outros ficaram gratos por recuperar o trabalho, muitas vezes à custa de judeus demitidos. E havia aqueles que desconfiavam dos nazistas mas decidiram dar-lhes uma chance.” A economia começou a girar com o programa de rearmamento e a produção automotriz, que dobrou de 1932 a 1933 e de novo em 1935.
Enquanto dirigiam seus carros subsidiados, os alemães escutavam no rádio as propagandas sobre a “batalha” contra o desemprego. “A crença de que Hitler realmente estava reconstruindo a Alemanha ajudou a aumentar a aceitação do regime nos primeiros meses”, diz Evans.
É certo que o país cresceu, mas estava longe de um milagre econômico. Hitler pegou carona numa economia global em recuperação e reivindicou para si medidas de incentivo à agricultura e à indústria que já vinham dos governos anteriores. Mais do que isso: o Terceiro Reich manipulou as cifras.
“A aparente solução rápida para o problema do desemprego no nazismo não se baseou só na criação de postos de trabalho, mas em retirar pessoas do mercado sem colocá-las no registro de desempregados”, diz o historiador britânico Dick Geary em 'Hitler e o Nazismo'. Isso não aconteceu só com os judeus que perderam seus cargos.
Entre 1933 e 1937, cerca de 700 mil jovens “arianas” abriram mão de trabalhar para poder receber um empréstimo estatal de 1 milhão de marcos (20% do salário médio anual). É que, segundo a Lei para a Redução do Desemprego, só receberia o empréstimo a mulher que ficasse no lar para procriar. Portanto, o número de desempregados não caiu pela metade entre 1932 e 1934 nem foi inferior a 1 milhão em 1937, como rezava a cartilha nazista. Para o alemão comum, porém, Hitler estava botando o país nos trilhos.
A autoridade carismática se baseia na percepção das massas de que o chefe possui uma missão, um heroísmo e uma grandeza particular”, diz o historiador britânico Ian Kershaw no livro 'The Hitler Myth' ('O Mito Hitler', em tradução livre).
Isso explica a importância da ritualização do culto ao chefe. “Para convencer os alemães de que ele era o redentor, os nazistas multiplicaram os desfiles de rua, onde os militantes levavam bandeiras e faziam a saudação [Heil Hitler!]”, diz Kershaw.
Fase 3: Tentação totalitária
Enquanto canalizava a indignação do povo, o nazismo botava as mangas de fora. Implantou um terror seletivo, sobretudo no início. Os primeiros campos de concentração eram reservados aos “indesejados” e “inimigos do Estado”, como comunistas, judeus, gays e criminosos. O alemão médio foi preservado.
“Hitler se preocupou em erguer uma ditadura popular. Nas ocasiões em que a sociedade não apoiava o que procurava fazer, foi preciso voltar atrás”, diz Gellately.
Isso aconteceu em abril de 1933, quando muita gente ignorou um boicote às lojas judaicas. E em 1938, quando o Partido Nazista removeu crucifixos das escolas, mas precisou colocá-los de novo nas paredes ante a chiadeira geral. Para formar a Gestapo, o regime aproveitou 90% dos soldados das antigas polícias políticas de Weimar.
Em vez de eliminá-los, disse a cada um deles: “Olhe, você até hoje combateu o comunismo para as outras polícias. Agora vamos lhe dar mais poder do que nunca imaginou. Se tiver qualquer suspeita contra qualquer pessoa, poderá detê-la sem problemas”. Gellately chama essa estratégia de “tentação totalitária”.
Para oficiais como Heinrich Müller, que havia caçado comunistas nos anos 1920, foi mesmo tentador seguir as novas diretrizes. Ele virou o chefe da Gestapo. Assim também o regime cooptou artistas, filósofos, professores e repórteres.
“Os nazistas não precisaram silenciá-los. Apenas disseram: ‘Vocês podem continuar trabalhando, só não escrevam nada crítico sobre nós'”, diz o historiador.
Os profissionais da saúde foram seduzidos com uma sandice em voga na época, a eugenia, que buscava aprimorar a raça humana pela genética. Um exército de médicos e enfermeiras esterilizou 400 mil pessoas no período de 1933 a 1938, entre elas deficientes físicos e mentais, epiléticos e alcoólatras.
Em cada bairro, o nazismo motivou os alemães a construir uma sociedade policial. A exemplo das pessoas que abrem esta reportagem, uma enorme rede de voluntários prestou ajuda à Gestapo. “Em Würzburg, havia apenas 20 oficiais da Gestapo para 100 mil moradores”, diz Gellately.
O historiador americano Eric A. Johnson chegou à mesma conclusão. “Na cidade de Krefeld, 41% dos processos contra judeus entre 1933 e 1939 foram iniciados por denúncias de civis, contra 19% da Gestapo e 8% de outras organizações”, diz ele no livro 'Nazi Terror' ('Terror Nazista', em tradução livre).
Fase 4: Extermínio
Quando a Alemanha deflagrou a Segunda Guerra Mundial, em 1o de setembro de 1939, o terror se radicalizou. Programas de esterilização deram lugar à eutanásia em massa, que vitimou crianças com síndrome de Down, deficientes, esquizofrênicos ou qualquer pessoa considerada “indigna de viver”.
A partir de 1941, o pesticida Zyklon B usado na eutanásia foi adaptado nos campos de concentração para exterminar 6 milhões de judeus. A propaganda nazista tentou suavizar a selvageria. A operação da eutanásia, por exemplo, deveria ser mantida em sigilo. Os centros de eliminação ficavam em hospitais.
Os médicos faziam atestados de óbito com datas e causas de morte falsas. Mas a verdade veio à tona. Pessoas demais morreram de repente. As famílias protestaram. Em 1941, após um sermão do arcebispo de Münster, Clemens August Graf Von Galen, o nazismo interrompeu a prática — mas deficientes continuaram morrendo em centros de saúde por meio de injeção letal, medicamentos e fome, somando 200 mil vítimas.
Não dá para estimar quantos sabiam sobre o extermínio dos judeus. Mas, diante de tantas evidências por parte de um regime que nunca escondeu suas intenções, não era difícil ligar os pontos. “Muita gente se tornou especialista em não saber”, diz Kershaw.
Relatórios confirmam que havia rumores de fuzilamentos em massa de judeus no outono de 1941. Até quem vivia confinado ouvia notícias das matanças. Prova disso são os diários de Victor Klemperer, judeu convertido ao protestantismo que se salvou por ser casado com uma “ariana”.
Preso numa Judenhaus (casa de judeus) em Dresden, ele registrou que em janeiro de 1942 já se sabia sobre judeus executados na Letônia e na República Tcheca. Mas os alemães comuns ficaram calados. Haviam endossado a exclusão social dos judeus desde as Leis de Nuremberg, em 1935, e fizeram o mesmo ante o extermínio.
O que explica o silêncio? “Foi uma mistura de egoísmo, falta de interesse pelo que começaram a ver como ‘outros’, antissemitismo, ignorância (não querer saber sobre o destino dos judeus) e medo das recriminações da SS e da Gestapo”, diz Ruehl.
O único grande protesto ocorreu em 1943, quando a Gestapo deteve os últimos judeus de Berlim. Cerca de 1.800 deles eram casados com não judias e tinham o status de “privilegiados”, como Klemperer. As esposas se manifestaram na porta do edifício onde eles aguardavam a deportação. E o que fez o regime? Poupou as mulheres e libertou os maridos. Prova de que o monstro recuava quando a população pedia.