Brasil tenta repatriar crânio de Harvard ligado à Revolta dos Malês

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Em janeiro de 1835 ocorreu uma das revoltas de escravos urbanos mais significativas do Brasil. Na ocasião, centenas de muçulmanos africanos, vestidos com trajes religiosos e carregando amuletos com orações e passagens do Alcorão inscritas, protagonizaram a Revolta dos Malês.
O objetivo era tentar tomar posse de Salvador. Mas os cerca de 600 malês foram derrotados; o que culminou com a morte de 70 deles. Pouco depois, o crânio de um dos rebeldes acabou sendo levado para os Estados Unidos — servindo como material para estudos eugenistas.
Agora, 190 anos depois, o Brasil luta para recuperar o resto mortal que está no Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia de Harvard. "Ele é nosso irmão e merece ser enterrado sob os ritos islâmicos", diz o xeque Abdul Hameed Ahmad, 74, líder e fundador do Centro Cultural Islâmico da Bahia, ao The Guardian.
Não importa se é um crânio, se é parte de um corpo; ele é muçulmano, e devemos honrá-lo", acrescentou.
A devolução do crânio
Segundo o jornal inglês, a existência do crânio só foi revelada em 2022, através do livro do historiador Christopher DE Willoughby e de um artigo no Harvard Crimson, relatando que a universidade guardava os restos mortais de pelo menos 19 indivíduos que provavelmente foram escravizados nos EUA, no Caribe e no Brasil.
Um comitê de Harvard chegou a admitir que os "restos esqueléticos foram utilizados para demonstrar diferenças espúrias e racistas para confirmar hierarquias e estruturas sociais existentes", e recomendou sua devolução às comunidades brasileiras.
João José Reis, principal historiador da Revolta dos Malês e que lecionou como professor visitante de Harvard, em 2012, contatou antigos colegas, "mas, nos últimos dois anos, o Museu Peabody atrasou sistematicamente as negociações de repatriação", explicou ao Guardian.
Recentemente, pesquisadores brasileiros recorreram ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil. "Foi quando as negociações finalmente começaram a avançar", apontou o pesquisador.
Até o momento, pouco se sabe sobre o crânio; apenas o responsável por sua retirada de um hospital na Bahia e transporte para Boston: Gideon T Snow, que escreveu um texto curto, mas fortemente eugenista sobre a pessoa a quem pertencia o crânio.
Africano genuíno, da tribo Nagô [como os iorubás também eram conhecidos na Bahia], estimado acima de todos os outros negros por sua alta estatura, largura de ombros, simetria e força de membros, unidos a uma inteligência não normalmente encontrada entre os negros de outras tribos. Esta foi a tribo que se revoltou aqui em janeiro passado (1835), e este foi um dos chefes no caso. Ele foi morto após uma disputa muito desesperada, a coragem desta tribo sendo totalmente igual à sua força hercúlea".
De acordo com o historiador Bruno Veras, Snow era diplomata nos EUA e também tinha envolvimento com o comércio brasileiro de açúcar. "Pelas pistas na documentação, parece que ele roubou a cabeça do homem do hospital enquanto ela ainda estava 'fresca'", informou ao Guardian.
Quando o crânio for devolvido, os pesquisadores pretendem verificar se o resto mortal, de fato, pertenceu a um iorubá. Até o momento, a condição do crânio é desconhecida, visto que Harvard negou compartilhar imagens com os pesquisadores.
Além do crânio Malê, a universidade está com a posse de outro crânio de "um indivíduo … exumado das 'ruas do Rio de Janeiro'", de acordo com o comitê de Harvard. A universidade declarou que pretende devolver os dois crânios para o Native American Graves Protection and Repatriation Act.
No entanto, Harvard solicitou que as autoridades brasileiras esclarecessem qual comunidade descendente legítima receberá os restos mortais — algo que está claro no caso Malê, apenas para o outro crânio. Como resultado, não há um cronograma para quando as repatriações podem ocorrer. A expectativa é que os restos sejam devolvidos ainda este ano, coincidindo com o 190º aniversário da revolta.


