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Cousteaus e Schurmanns: a divulgação da ciência oceânica como legado de família
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Cousteaus e Schurmanns: a divulgação da ciência oceânica como legado de família

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Aventuras Na História
04/12/2022 12h00
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©Reprodução/Picturehouse
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Muito antes da Organização das Nações Unidas (ONU) declarar os anos de 2021 a 2030 como a Década dos Oceanos, um período de conscientização, mobilização social, divulgação científica e muito trabalho para reverter os níveis de poluição, acidificação e perda da biodiversidade marinha, duas famílias já se preocupavam em ser porta-vozes dessa causa. Enquanto os Cousteaus herdaram a vocação do patriarca Jacques-Yves Cousteau e o destino agiu, assim sem muitos planejamentos, para formar três gerações de documentaristas e conservacionistas do oceano, os Schurmanns já nasceram como sinônimo de família e seguem juntos em sua missão.

É possível seguir diferentes caminhos para descrever quem foi o francês Jacques Cousteau. Podemos pegar a rota do desbravador e explicar seu alistamento na marinha, sua paixão por mergulho e suas aventuras de exploração oceânica. Melhor então seguir na linha do inventor e contar as histórias sobre o desenvolvimento do primeiro equipamento de mergulho autônomo, o conhecido Aqualung, a primeira câmera subaquática, sistemas de propulsão ou de um submarino totalmente equipado para realizar filmagens. Acontece que ambas as facetas acabam reforçando o seu principal legado: revelar para a sociedade um pouco sobre a vida e a dinâmica que acontecia nas profundezas do oceano.

O dono da boina vermelha mais famosa do mundo foi documentarista, gravou mais de 70 filmes, ganhou dois prêmios Oscar e escreveu mais de 50 livros. Teve sua vida retratada no longa francês 'A Odisseia' (2016) e no documentário estadunidense 'Becoming Cousteau' (2021). Produziu e apresentou duas séries documentais para a televisão, a 'The Undersea World of Jacques Cousteau', entre 1968 e 1976, e 'The Cousteau Odyssey', em 1978. A bordo do navio Calypso, um laboratório oceanográfico, realizou inúmeras pesquisas científicas.

Capa do documentário sobre a vida e o trabalho de Jacques Cousteau
Capa do documentário sobre a vida e o trabalho de Jacques Cousteau

Apesar do legado real e contribuição para diferentes áreas que investigam e divulgam o oceano nos dias atuais, Cousteau também foi alvo de críticas e passou a ter uma postura conservacionista, de proteção ao meio ambiente, após constatar com suas lentes as mudanças causadas pelo homem no ecossistema marinho. Tema de um dos capítulos do livro Green Heroes, do pesquisador László Erdős e editado pela Springer, o chefe da família Cousteau é retratado como uma testemunha da rápida deterioração do oceano que aprendeu muito nesse processo, inclusive com seus próprios erros.

Erdős escreve que a gravação do documentário The Silent World, pelo qual Cousteau ganhou seu primeiro Oscar, foi extremamente destrutiva. Para se ter uma ideia, houve maus tratos a diversos animais, uma baleia morreu, assim como vários tubarões, e toda uma seção de recifes de corais foi demolida. Durante a série televisiva Cousteau recebeu mais críticas. Erdős relata que a equipe capturou duas focas, chamaram-nas de Pepito e Cristobal e passaram a investigar seu comportamento. O autor de Green Heroes ressalta que se tratava de um estudo pseudocientífico.

A professora Márcia Regina Barros da Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP), pesquisa a temática do cinema científico, principalmente observando um dos principais expoentes do gênero no Brasil, o diretor Benedito Junqueira Duarte. Segundo a pesquisadora, o cinema documental, mesmo que de temática científica, possui interferência, produção e apropriação por parte dos seus realizadores, o que pode fazer com que a obra se distancie da realidade, já que existe uma intervenção em todas as passagens. Com Cousteau, essa característica não é diferente, vide as críticas que recebeu nos primeiros anos de sua carreira.

O documentário tem um compromisso com determinado tema e com alguns parâmetros de realidade. Mas, fora isso, há todo um universo de intervenção e escolhas, na edição, captação de imagens e roteiro, que vai depender do seu ponto de vista como produtor, diretor e roteirista. Então, esse alcance do real está relacionado com o contexto de produção desse filme”, declara Silva.

Defensores do oceano

Apesar dos erros, Cousteau percebeu que sua voz e imagens poderiam ser utilizadas para além de divulgar a vida marinha para a sociedade, chamando a atenção de políticos e líderes globais e estimulando, assim, a criação de políticas públicas em defesa desse ecossistema. Na década de 1980, por exemplo, havia grande interesse de explorar economicamente os recursos da Antártica. Cousteau se recusava a aceitar isso e lançou uma grande petição (a campanha World Park Antarctica) contra a mineração no continente gelado, saindo vitorioso dessa batalha.

No artigo científico 'Who can resist this guy? Jacques Cousteau, Celebrity Diplomacy, and the Environmental Protection of the Antarctic', a pesquisadora da Universidade de Melbourne (Austrália), Emma Shortis, investiga o papel de Cousteau na diplomacia. Segundo Shortis, ele foi capaz de usar sua influência como celebridade e o uso inteligente da mídia, especialmente da televisão, para realizar uma mobilização social e realmente atuar de forma a estimular o avanço de instrumentos políticos de defesa ao meio ambiente.

Jacques foi casado com Simone Melchior, a primeira mulher mergulhadora e aquanauta, que teve grande participação em seus trabalhos. Ambos tiveram dois filhos: Philippe Cousteau, mergulhador, autor e diretor especializado em questões ambientais, e Jean-Michel Cousteau, oceanógrafo, ambientalista, ecologista e educador. Em seu segundo casamento, com Francine Triplet, teve Diane Cousteau e Pierre-Yves Cousteau, mergulhador e produtor de filmes. A linhagem segue com os netos Céline Cousteau, defensora socioambiental, Alexandra Cousteau, cineasta e ativista ambiental, e Fabien Cousteau, oceanógrafo e documentarista.

Em junho de 2014, Fabien Cousteau e sua equipe mergulharam no mar da Flórida (EUA) para uma missão de 31 dias a bordo de um laboratório submerso. O laboratório foi equipado com inúmeras câmeras que, além de exibirem todos os experimentos científicos realizados, ainda mostravam o dia a dia dos cientistas a 10 metros de profundidade, como em um reality show científico. O público pôde acompanhar tudo ao vivo e recebeu informações atualizadas pelas redes sociais.

Alexandra Cousteau é conselheira sênior da Oceana, uma organização internacional focada exclusivamente nos oceanos e dedicada a alcançar mudanças ​​por meio da realização de campanhas políticas, sempre baseadas na ciência e com prazos fixos e metas articuladas. A ativista trabalha especificamente na assessoria de mídia, desenvolvendo estratégias para que o oceano tenha mais espaço nas pautas midiáticas.

Segundo Manuel Biscoito, curador do Funchal Natural History Museum, na Ilha da Madeira, o trabalho de Cousteau serviu como fonte de inspiração para toda uma geração de biólogos marinhos. “Ele foi a primeira pessoa que verdadeiramente chama a atenção do mundo para os problemas que os oceanos tinham em uma perspectiva subaquática, ainda muito inacessível para o grande público. Nos fez tomar consciência que o mar é imenso, riquíssimo e, infelizmente, vulnerável e pouco protegido”, declara Manuel Biscoito.

O curador indica que Cousteau também foi responsável por reforçar a tradição do principado de Mônaco em relação às questões do oceano, iniciada, muito tempo antes, com o príncipe Alberto I, um dos pais da oceanografia moderna. Cousteau foi diretor do Museu Oceanográfico de Mônaco por um período. Atualmente, o príncipe Alberto II dá seguimento ao legado de sua família e é um dos grandes defensores dos oceanos, chamando a atenção dos líderes internacionais sobre o problema da acidificação, por exemplo.

Sua influência cruzou o Atlântico e chegou no Brasil

Inspirados pela árvore genealógica dos Cousteaus, os Schurmanns foram a primeira família brasileira a dar a volta ao mundo a bordo de um veleiro. A aventura de 10 anos começou em 1984, com o casal Vilfredo e Heloisa ao lado dos seus filhos Wilhelm, David e Pierre. Desde então, a família fez outras duas voltas ao mundo: Magalhães Global Adventure (1997 - 2000), com a filha Kat Schurmann a bordo, e Expedição Oriente (2014 - 2016). As duas últimas grandes viagens foram televisionadas, recebendo grande destaque do programa Fantástico, da TV Globo.

“O Jacques Cousteau é de outra época, mas inspirou nessa questão do amor pelos oceanos. Antes dele, não havia ninguém que fizesse algo pelos oceanos. A família dele era francesa e liderou essas expedições pelo mundo. A nossa família é brasileira e tem a mesma iniciativa. Essa é a ligação que temos em comum”, ressalta Heloísa Schurmann.

Atualmente os Schurmanns estão novamente a bordo de um veleiro, desta vez na Expedição Voz dos Oceanos. A família e tripulantes partiram de Santa Catarina em agosto de 2021 e chegarão na Nova Zelândia em dezembro de 2023. A proposta é passar por 65 destinos conscientizando e engajando as pessoas para a necessidade de ações urgentes para a preservação dos oceanos. A iniciativa, que irá testemunhar e registrar a poluição nos mares e navegar em busca de soluções inovadoras para combater esse problema, tem apoio mundial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Plastic Soup Foundation. Tanto a rota da viagem, como vídeos, depoimentos e imagens das ações desenvolvidas nos locais onde desembarcam estão disponíveis no site do projeto, em https://vozdosoceanos.globo.com. A expedição também tem ampla cobertura das redes sociais e pílulas semanais no programa Fantástico.

Família Schurmann durante a expedição Voz dos Oceanos
Família Schurmann durante a expedição Voz dos Oceanos / Crédito: Divulgação

Heloisa Schurmann, a matriarca da família, falou com a nossa reportagem de dentro do veleiro. Eles haviam acabado de levantar âncora em Fort Lauderdale, no Estado da Flórida (EUA), e estavam em direção à cidade de Nova York (EUA). Heloisa conta como sua forma de divulgar os oceanos mudou ao longo dos anos, das suas primeiras aparições no Fantástico até o projeto atual, com o uso de novos recursos tecnológicos e engajamento dos usuários de redes sociais. “Estamos atrasados. A nossa necessidade de divulgação realmente ficou mais urgente. O assunto é para ontem. Acho que o primeiro desafio que temos que focar é na educação e na conscientização de cada pessoa. É preciso fazer que as pessoas entendam que também fazem parte dessa natureza e que tudo o que acontece com o oceano vai afetar a sua vida”, comenta.

A grande missão do projeto é alertar sobre o uso e descarte indevido do plástico. A família acabou vendo de perto o aumento desse problema nos oceanos, o que ficou mais evidente durante a última volta ao mundo, realizada nos anos de 2014 a 2016. “Nesses anos todos que estamos vivendo nos oceanos nós temos visto que a sociedade não tem ideia do que realmente está acontecendo nos mares, rios e águas do nosso planeta. A gente sabe muito mais sobre o céu, as estrelas, o programa espacial, do que sabemos do nosso oceano”, declara Heloisa.

A cada parada em um determinado destino, a família realiza uma série de ações de conscientização, que vão desde a limpeza de praias até entender os desafios do cotidiano das comunidades ribeirinhas e caiçaras. A proposta é envolver ambientalistas, ONGs, empresas e gestores públicos da região para que possam pensar em soluções viáveis para reverter a situação local. Uma das vertentes de atuação é relacionada à capacitação de empreendedores e startups que tenham projetos ou atuem no desenvolvimento de tecnologias capazes de diminuir o uso do plástico. A cultura oceânica também é um pilar importante da expedição, algo que é estimulado por meio dos profissionais da educação de cada cidade onde a família desembarca.

Os cientistas da região, oriundos de universidades e institutos de pesquisa locais, também são convidados para o debate durante as ações da Família Schurmann. Heloisa tem graduação em inglês pela New York University, com especialização na área de pedagogia, escreveu quatro livros, mas nunca chegou a ter uma formação no campo das ciências biológicas ou oceânica. Para minimizar essa falta de conhecimento formal sobre o objeto de sua divulgação, se preparou muito. Além de estudar sobre sustentabilidade, participou ativamente de seminários e workshops ao redor do mundo sobre a temática, inclusive um congresso na Holanda no qual cientistas divulgaram o resultado de suas pesquisas sobre os malefícios do microplástico para a saúde humana.

“Nós temos uma parceria muito forte com o professor Alexandre Turra, da Universidade de São Paulo. Eu digo que o Instituto Oceanográfico está embarcado conosco”, explica Heloisa. Segundo a divulgadora, o pilar científico é muito importante para a divulgação dessa expedição e está sendo liderado pela USP, que investiga os diferentes níveis de impacto que os oceanos estão sofrendo e auxilia a família a como explicar certos conceitos científicos para a sociedade.

Heloisa menciona que estão participando de um programa chamado Cidadão Científico em parceria com a USP. “A nossa tripulante, nossa chefe de cozinha, a Érica, vai ao mercado e peixaria de todos os lugares, compra os moluscos bivalves e envia para a USP devidamente embalados. Lá eles são examinados para monitorar a quantidade e tipo de microplásticos que estão presentes em seu organismo”, ressalta Heloisa.

A matriarca acredita que o sucesso da família em mover gerações em prol de um objetivo comum está na facilidade de se comunicar e de dialogar com as pessoas, mas também no cuidado com a informação que é transmitida. “Eu não sou cientista. Então, os fatos divulgados para o público pelo Voz dos Oceanos nas mídias sociais são sempre de fontes fidedignas, não uma fonte aleatória. Nós fazemos questão de buscar uma universidade ou entidade de pesquisa para fazer essa divulgação científica”, reforça.


*Emanuel Galdino é jornalista especializado em ciência, mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e doutorando em Sustentabilidade pela USP. Sua área de pesquisa abrange as políticas de ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento de tecnologias ambientais. Foi repórter do setor industrial, analista de comunicação no Sesi-SP e bolsista de comunicação no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (ICT-Unifesp).

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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