Militares no poder: os bastidores do Golpe de 1964
Aventuras Na História
O termo golpe de Estado, antes de tudo, é um conceito das ciências humanas. Principalmente os historiadores e sociólogos buscam entender esse conceito para, na utilização em meio à análise, haver precisão metodológica.
Esse conceito já possui muita bibliografia. Há produção sobre essa noção desde o século 17, quando as mudanças no funcionamento do mundo das cortes fez necessária a criação de um novo arcabouço de ideias para entender o mundo autofágico da política. Partindo da realidade política palaciana, o conceito se emoldura em sua forma moderna entre o 18 e o 19.
Um golpe de Estado é uma anormalidade institucional, assim como uma revolução, uma revolta, uma invasão ou um impedimento, mas se diferencia destas outras em sua forma. Os historiadores hoje entendem golpe como a interrupção de um mandato ilegalmente por parte de membros internos à própria instituição.
Este é o caso do ocorrido no Brasil em 31 de março 1964, há exatos 59 anos. Há uma interrupção — vacância do cargo de Jango — ilegal — constitucionalmente, o mandato seria inviolável — por membros internos — Exército, que é parte do organograma do Estado — à instituição — Estado brasileiro.
Entenda como se compôs o cenário em que uma atitude drástica como um golpe militar foi viabilizada e com amparo de parte da sociedade.
Equipe de governo de Vargas, em que vemos Jango / Crédito: Wikimedia Commons
O Brasil pré-Golpe
Para tanto, voltamos a 1961, ano fulcral deste processo. Neste período, o presidente Jânio Quadros, numa tentativa de reatar relações com a população e aumentar seu poder, declara sua renúncia. Com isso, fica legalmente indicado que assuma o vice-presidente eleito, João Goulart, do PTB.
Jango, na visão dos militares, era tido como um comunista — mesmo que sua proposta política desenvolvimentista beire a social-democracia — e não poderia assumir. O gaúcho, para piorar sua situação aos olhos dos militares, voltava de uma viagem diplomática à China.
Com a oportunidade, os militares da alta patente se aproximam do Congresso e aprovam um fechamento institucional que é solucionado com um acordo com Jango: ele assumiria como prevê a Constituição, mas seria sob regime parlamentarista.
Essa anormalidade foi estranha não somente pela ilegalidade, mas também pela intangibilidade do regime na tradição política brasileira. Em 1963, por iniciativa da situação, é convocado um plebiscito nacional com o tema do regime político. Ganhando com 82% dos votos, o Brasil volta a ser presidencialista, tendo João Goulart como líder legal.
Jango tinha um histórico relevante, principalmente ao lado de Vargas. Inclusive, foi seu ministro do Trabalho na década de 1950. Com isso, a direita mais conservadora, que ocupava espaços de poder no Clube Militar e na UDN, que detesta o legado varguista, volta a ameaçar o governo do presidente.
Ao mesmo tempo, João Goulart tinha como eixo principal do governo a Bandeira Unificadora das Reformas de Base, um dossiê de propostas reformistas de reajuste estrutural de diversas esferas que competem ao governo, com o objetivo de humanizar e dinamizar a economia brasileira e o funcionamento da máquina democrática.
Com isso, Jango defendia bandeiras como o direito irrestrito ao voto, incluindo analfabetos e soldados (que não votavam na época), a distribuição de lotes de terra na forma de propriedade privada rural (reforma agrária), uma reforma fiscal visando à distribuição da renda etc.
Comício da Central do Brasil / Crédito: Arquivo Nacional
O governo de Jango foi marcado principalmente pela polarização política e ideológica. No cerne da Guerra Fria (e poucos anos após a vitória dos revolucionários cubanos em Havana, fazendo pairar ameaças exageradas da paranoia anticomunista), a sociedade, extremamente politizada à época, experimentou uma radicalização desta polaridade, que se traduz na série de manifestações e expressões públicas da sociedade civil em relação ao governo e suas opiniões, contra e a favor de Jango.
Foi o momento, por exemplo, do Comício da Central do Brasil (que, junto da anistia presidencial aos marinheiros amotinados, alimentou o discurso direitista de que Jango era radical e imprudente demais para governar) dos janguistas e da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, exigindo intervenção militar contra o “comunismo infiltrado e antibrasileiro”.
Por outro lado, os militares estão inseridos num contexto de hipérbole da lógica da Guerra Fria. Versado na Doutrina de Segurança Nacional, o alto escalão das Forças Armadas estava estritamente associado à Escola Superior de Guerra do Panamá, órgão chefiado por órgãos da segurança dos EUA, em que os militares latino-americanos eram ensinados sobre a ideologia liberal americana, a doutrina de alinhamento com o país e a luta anticomunista.
Com isso, há a formação de toda uma geração de mandatários militares que têm menos interesse na integridade institucional de seus países e mais no direcionamento ideológico e moral puxado a um nacionalismo conservador e autoritário.
O ano de 64
Diante de todo esse contexto, migremos para o fatídico ano de 1964. Os conspiracionistas militares, mesmo que não de forma monolítica, tinham já entendido a suposta necessidade de derrubar João Goulart.
Nessa lógica, no dia 31 de março de 1964, já 59 anos, o general Olímpio Mourão, do batalhão de Minas Gerais do Exército, pega uma série de tanques e ruma pela estrada em direção ao Rio de Janeiro.
Lá havia um grande contingente populacional antijanguista, incluindo o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, ícone do antivarguismo. Mourão acumula contingente e apoio no Rio de Janeiro de Lacerda e na São Paulo de Adhemar de Barros.
Tanques chegam a Brasília / Crédito: Jornal do Senado via Wikimedia Commons
Do Rio de Janeiro, os tanques conspiracionistas se voltam a Brasília. Na virada da noite, os golpistas já tinham ocupado o Planalto e exigiam a saída de Jango, que, incapaz de reagir, foge da capital e vai para o Rio Grande do Sul, onde tem grande base de apoio.
O Rio Grande do Sul, historicamente, se associou à defesa dos projetos ligados a Vargas e Jango, tendo Leonel Brizola como governador e defensor da “Legalidade”, ou seja, a manutenção dos mandatos democraticamente eleitos.
Porém, para além do uso de contingente militar contra um representante do povo eleito, está no momento de ocupação do Congresso Nacional o principal indício de ilegalidade desse processo.
Com o recuo de Jango, o líder do Parlamento, Ranieri Mazzilli, associado à conspiração militar, declara vaga a Presidência da República, argumentando que o presidente abriu mão do cargo ao ter fugido e estaria fora do território nacional (supostamente Uruguai).
Porém, Jango estava no sul do país e isso era fato conhecido. Ao assumir o cargo de presidente com esse argumento, Mazzilli rasga a Constituição de 1946 junto aos militares, dando fim a um ciclo político democrático iniciado com a queda do Estado Novo.
Com a vacância da Presidência, o Congresso convoca uma nova eleição indireta para declarar um indicado da junta militar como chefe de Estado. Elegem assim Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente militar e membro da ala moderada entre os golpistas.
Todo o processo vai envolver não somente o exílio de Jango, mas uma série de cassações em massa de deputados, governadores e membros de partidos políticos ligados tanto à esquerda quanto à direita.
Até Carlos Lacerda, udenista de extrema-direita, foi perseguido pelos militares depois de um tempo. Logo no primeiro ano, a liberação de longas listas de cassação política remodelou a configuração das forças políticas no Estado.
O PTB e o PSD passam a sofrer sanções governamentais claramente autoritárias. O calor do golpe atingiu até as Forças Armadas: além dos membros do Exército que eram de esquerda (Henrique Teixeira Lott se destaca, mas não era o único), hoje se calcula que mais de 6 mil militares, incluindo oficiais, foram afetados diretamente com as cassações e mortes do golpe.
Ao mesmo tempo, o golpe envolveu uma confusão interna dentro da própria aliança golpista, em que pairava a dúvida sobre o retorno ou não da normalidade institucional dos anos anteriores.
Castello Branco defendia o retorno do poder democrático às mãos civis, mas foi a ala ligada à Linha Dura, de Costa e Silva, que tomou as rédeas do processo e conduziu o golpe à instalação de um governo ditatorial que vai durar até 1985, com a morte de opositores, o fechamento do Congresso, a tortura sistemática e o uso de eleições indiretas para a manutenção do governo pelo Alto Escalão do Exército.
Democracia abalada
Muitos morreram e desapareceram durante a ditadura (e não somente esquerdistas ligados à guerrilha) e a democracia brasileira até hoje é abalada pela desestruturação da democracia possibilitada pelo movimento vertical dos militares em 1964.
Quando recomendaram a Jango que fechasse o Congresso para passar as Reformas, Jango recusou. A junta militar devia ter feito o mesmo. Encerra-se com uma citação do presidente, general e ditador Ernesto Geisel sobre a alcunha de golpe ao movimento de 1964:
O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento 'contra', e não 'por' alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".