Muito antes da Segunda Guerra: entenda as origens do antissemitismo

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Mais de seis milhões de judeus foram mortos durante o Holocausto — genocídio cometido pelos alemães nazistas que se iniciou antes mesmo de estourar a Segunda Guerra Mundial.
Desde 2005, a Organização das Nações Unidas, a ONU, estabeleceu o 25 de janeiro como Dia Internacional da Memória do Holocausto — data que coincide quando o Exército Vermelho libertou o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau.

Engana-se, porém, quem associa o antissemitismo (a perseguição contra judeus) apenas ao período em que Adolf Hitler esteve no poder. Muito pelo contrário, a prática já fora inclusive fomentada por Martinho Lutero no século 16 e esteve presente em outros períodos históricos.
"A perseguição aos judeus historicamente pode ser traçada ainda ao período da Antiguidade", explica Igor Sabino, doutor em Ciência Política e autor do livro 'Jesus, um Judeu' pela editora Mundo Cristão, à AH.
"Um exemplo disso é a narrativa do livro bíblico de Ester, sobre a tentativa de extermínio dos judeus por Hamã, mas ganha força mesmo após a morte de Cristo, nos séculos iniciais da era cristã, quando aconteceu a chamada 'partilha dos caminhos' e cristianismo e judaísmo passaram a se identificar como religiões distintas", contextualiza.
Sabino aponta que, a partir de então, os judeus passaram a ser vistos pelos cristãos como um povo 'deícida' — que seriam culpados pela morte de Jesus. "A partir de então, todos os males econômicos e sociais na Europa passaram a ser atribuídos aos judeus".
Origens
Em primeiro momento, o antissemitismo surgiu devido às disputas teológicas entre cristãos e judeus, explica Sabino, que aponta que o conflito influenciou até mesmo a formação do Islã e, consequentemente, também o relacionamento entre judeus e muçulmanos nos primeiros séculos.
Historicamente, levando em consideração o aspecto religioso e racial do antissemitismo, podemos destacar a Inquisição, que foram as tentativas da Igreja Católica de converter os judeus à força ao cristianismo na Europa e nas Américas, inclusive no Brasil", recorda.
Já durante os séculos 19 e 20, o antissemitismo assumiu aspectos mais raciais, com seu ápice ocorrendo durante o Holocausto. "Durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler e seus aliados buscaram exterminar toda a população judaica da Europa, sendo o antissemitismo um dos principais elementos que tornam o Holocausto um evento único e que o distingue de outros genocídios".

Sabino também destaca a publicação de 'Os Protocolos dos Sábios de Sião', na Rússia, em 1903. "O panfleto trata-se de uma grande teoria da conspiração antijudaica e foi traduzido para vários idiomas, servindo de base para diversos atos antissemitas, do Holocausto até os dias atuais".
Outro ponto importante citado por ele é a criação do Estado de Israel, em 1948, quando o antissemitismo também passou a se manifestar, em diversas ocasiões, como uma forma de antissionismo; ou seja, a negação do direito do povo judeu ao Estado judeu, neste caso, Israel.
"Nos últimos meses, sobretudo após o massacre realizado pelo grupo terrorista Hamas no sul de Israel, em 07 de outubro de 2023, temos visto um ressurgimento do ódio aos judeus no mundo inteiro, com o ressurgimento de antigas teorias da conspiração antissemitas".
Estereótipos antissemitas
Como já citado, a principal causa da perseguição contra os judeus começou como uma disputa religiosa, quando passaram a ser supostamente culpados pela morte de Jesus.
No entanto, Igor Sabino também aponta questões econômicas e sociais nas origens do antissemitismo, visto caber aos judeus algumas ocupações proibidas pela Igreja aos cristãos, como determinadas transações financeiras envolvendo a cobrança de juros. "Foi nesse período que surgiram vários esteriótipos antissemitas que, infelizmente, são comuns até hoje".
Dentre eles, a ideia de que os judeus controlam a economia do mundo e até mesmo os chamados 'libelos de sangue', a ideia de que os judeus matavam crianças cristãs perto da Páscoa para preparar a matzá, uma espécie de pão sem fermento que faz parte da liturgia judaica de Pessach".
Ao longo do tempo, o antissemitismo passou a ser discutido não somente como uma questão religiosa, mas também com aspectos étnicos. Sabino, inclusive, recorda que Hannah Arendt, filósofa e sobrevivente do Holocausto, afirmava haver distinção entre o antissemitismo racista dos nazistas e o antissemitismo religioso medieval.

"Eu, contudo, com outros pesquisadores, discordo dessa ideia. O fato de os judeus serem um povo étnico-religioso faz com que o ódio contra eles assuma diversos aspectos, os quais frequentemente se misturam entre si. Durante a Inquisição, por exemplo, a principal motivação do antissemitismo era religiosa, mas ainda assim o elemento racista se fazia presente, com a ideia da 'pureza de sangue'", discute.
Em contrapartida, ele cita que durante o Holocausto, mesmo com a prevalência de ideologias abertamente racistas, elementos religiosos cristãos eram comumente utilizados pelos nazistas, e até pelo próprio Hitler, para justificar o ódio aos judeus.
"Houve até mesmo tentativas de negar a identidade judaica de Jesus. Logo, não acho que seja possível fazer uma distinção tão rígida sobre o antissemitismo, principalmente hoje. Infelizmente, temos visto crescentes manifestações de antissemitismo tanto raciais quanto religiosas".
Ferramenta política
Sabino destaca que os judeus sempre foram uma minoria nas regiões pode onde passaram após serem expulsos de Israel em meados dos anos 70 d.C.; o que, em sua visão, facilitou culpá-los pelos males reais ou imaginários do mundo, os vilificando tanto por ideologias de esquerda quanto de direita.
Hoje, por exemplo, a extrema-direita culpa os judeus pelo declínio da civilização ocidental, responsabilizando-os pelos movimentos migratórios nos EUA e em países da Europa, o que é absurdo já que isso implica que os judeus estariam por trás de complexos eventos geopolíticos, o que é humanamente impossível", aponta.
No outro lado dessa balança, o autor aponta que setores da esquerda, em nome de uma suposta crítica a Israel, empregam elementos de diversas teorias sociais para pintar os judeus como um povo estrangeiro ao Oriente Médio que age a serviço dos interesses imperialistas ocidentais — o que negaria amplas evidências históricas das ligações judaicas com a região.
"Além disso, acabam aplicando a Israel padrões que não são aplicados a nenhum outro país e ultrapassa o limite da crítica justa e, em alguns casos, até necessária", discorre.
Jesus, um judeu
Por fim, em seu livro, 'Jesus, um Judeu', Igor Sabino aponta que o preconceito contra judeus acontece até mesmo no meio cristão. Mas como isso acontece? Afinal, se Jesus era judeu, então como ter preconceito contra a principal figura que rege sua religião?
"É uma pergunta que eu também me fiz quando comecei a estudar o Holocausto e as raízes do conflito israelo-palestino. A razão para isso se dá pela ideia de que os judeus rejeitaram Jesus e foram culpados por sua morte. De acordo com essa ótica, é como se tivesse existido uma substituição nos planos divinos em relação aos judeus, os quais teriam sido trocados pelos cristãos, que, independentemente de sua origem étnica, formariam um 'novo Israel' espiritual", explica.
Essa teologia da substituição leva alguns cristãos a terem opiniões desfavoráveis em relação aos judeus, tornando-os bastante suscetíveis a abraçarem ideias e movimentos antissemitas".
Como exemplo, ele cita o que ocorreu durante o Holocausto, quando os nazistas buscaram criar uma representam de um Jesus ariano. "Ainda hoje, ideologias antissemitas de extrema-direita encontram um terreno fértil entre cristãos que adotam esses pressupostos teológicos, como aconteceu com os terroristas responsáveis pelos ataques de Pittsburgh em 2018 e de Poway, em 2019, ambos nos EUA".

Concluindo o assunto, ele também cita algumas premissas da chamada teologia da libertação palestina, "que mistura elementos de abordagens acadêmicas pós-colonialistas e pós-estruturalistas com antigos esteriótipos antijudaicos cristãos para promover boicotes ao Estado de Israel, retratando Jesus como uma vítima da opressão imperial que hoje se identifica muito mais com os palestinos do que com os seus compatriotas judeus que são cidadãos israelenses".


