Os judeus forçados a trabalharem na triagem dos bens de prisioneiros em Auschwitz
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Durante o regime nazista, o complexo dos campos de concentração em Auschwitz foi o maior de todos. O local abrigava três campos principais, onde os prisioneiros eram obrigados a trabalharem forçadamente por um longo período. Por lá, também funcionou um prolífico campo de execuções.
A cerca de 60 quilômetros oeste da cidade de Cracóvia, Alta Silésia, na Polônia ocupada, a Schutzstaffel (SS) estabeleceu três campos principais: Auschwitz I, em maio de 1940; Auschwitz II (ou Auschwitz-Birkenau) no início de 1942; e Auschwitz III (Auschwitz-Monowitz), em outubro de 1942.
Segundo dados da Enciclopédia do Holocausto do United States Holocaust Memorial Museum, no total, aproximadamente 1,1 milhão de judeus foram deportados para Auschwitz. Destes, ao menos 960.000 foram exterminados; além de cerca de 74 mil poloneses, 21 mil ciganos, 15 mil prisioneiros soviéticos e entre 10 e 15 mil civis de outras nacionalidades.
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Os que recém-chegavam em Auschwitz-Birkenau tinham que passar por uma triagem, pela qual membros da SS decidiam quem era capaz, ou inapto, a trabalhar. O segundo grupo, sempre a maioria, era encaminhado para a morte certa nas câmaras de gás.
Já seus pertences eram confiscados em enviados para o depósito Effektenlager, que popularmente ficou conhecido como Kanada. Descrito também como o Eldorado de Auschwitz.
A triagem
Em meados de 1942, o gaseamento em massa de judeus e prisioneiros começou em Auschwitz. Naquela época, as pessoas que eram enviadas aos campos não sabiam dos horrores que os aguardavam — muitos imaginavam que seriam apenas reassentados.
Para disfarçar o trágico destino, os alemães permitiam que os enviados ao campo carregassem até 45 quilos em suas bagagens. Por conta disso, os judeus levavam alimentos, bebidas alcoólicas, utensílios domésticos, roupas, carrinhos de bebê, ferramentas profissionais e uma variedade de objetos de valor.
Quando chegavam ao campo, os prisioneiros tinham que se despir: assim, seriam barbeados, tinham seus cabelos cortados e recebiam 'roupas' do campo — ou então eram enviados para serem gaseados.
Já seus pertences eram considerados propriedade da Alemanha, ou seja, jamais seriam devolvidos aos seus proprietários ou familiares. As mercadorias eram classificadas em embaladas pelos Kanada Kommando — nomeado entre os prisioneiros registrados que foram admitidos no campo como trabalhadores. Viver em Kanada era um recorte totalmente diferente da vida em Auschwitz.
Um oásis em Auschwitz
Kanada I, foi oficialmente chamado de Effektenlager I. O complexo de seis unidades foi usado, entre março e dezembro de 1942, para ser o local de trabalho de entre 1.000 e 1.600 prisioneiros, que vasculharam as bagagens de judeus, em sua maioria poloneses, descreve o The Canadian Jewish News.
Em dezembro de 1943, com a prevista chegada de 430.000 judeus húngaros, Kanada II (Effektenlager II) foi construído: um enorme complexo de 30 edifícios que exigia a indução de centenas de mulheres judias-húngaras nas fileiras do Kommando, aumentando o número de 'trabalhadores' para aproximadamente 2.000.
Embora ficasse a apenas quatro quilômetros de Auschwitz, na aldeia de Brzezinka, Kanada II apresentava diferenças quando comparado ao campo de concentração. O local foi descrito por Jonathan Freedland, autor de 'A Arte da Fuga' (Ed. Intrínseca) como 'O Eldorado de Auschwitz'.
Freedland aponta que em Kanada ninguém passava fome. "No Bloco 4, prisioneiros recebiam banhos de verdade: com água que não era nem gelada, nem escaldante".
Além disso, cada trabalhador do local tinha sua própria cama e cobertores. "A SS e seus encarregados podiam praticar inúmeras crueldades fora daquele prédio, mas dentro os Kapos falavam com prisioneiros em voz uniforme, sem berros ou reclamações. E o mais notável é que não havia espancamentos".
O trabalho em Kanada
Por lá, ficava sob a incumbência do Comando de Remoção abrir as malas e sacolas e fazer a triagem do conteúdo, separando as coisas que podiam ser usadas das que deveriam ser descartadas.
"Os prisioneiros deviam atacar a montanha de bagagens com a máxima rapidez, agarrar o tanto de bolsas que conseguissem, idealmente duas malas em cada mão, e depois correr com a carga até um dos depósitos do tamanho de estábulos, nos quais deveriam largar a bagagem sobre um cobertor gigante estendido no chão. Os trabalhadores do depósito então pulavam em cima das malas ou dos baús e os quebrava, ou rasgavam, para poder espalhar o conteúdo e deixá-lo pronto para os peritos em seleção fazerem a triagem", explica Jonathan.
Em 'A Arte da Fuga', o autor relata que, após o processo, pilhas eram formadas, em separado, com roupas masculinas, femininas, infantis e assim por diante, até que essas fossem retiradas por um grupo de mulheres prisioneiras que faziam uma seleção mais meticulosa.
Essa nova fase era separada em três processos: 1º) separar o que era utilizável do que estava quebrado ou danificado; 2º) remover qualquer indício de propriedade judaica (como as estrelas amarelas costuradas); 3º) procurar itens de valor que poderiam estar ocultos — sejam joias ou dinheiro.
Um desses trabalhos consistia em espremer tubos de pasta de dentes, onde os prisioneiros costumavam guardar diamantes ou coisas do tipo. Freedland diz que uma das teorias para o nome do lugar vem justamente deste processo.
Dizia-se que as integrantes do Comando de Remoção que falavam alemão muitas vezes podiam ser ouvidas perguntando, enquanto separaram os artigos, Kann er da nicht was drin’ haben? [Pode haver alguma coisa (de valor) aí dentro?]. A expressão Kann er da virou Kanada", aponta.
A outra versão sugere que, anos antes da guerra, eslovacos e poloneses haviam emigrado para o Canadá, onde surgiu uma lenda de que até mesmo um camponês que não conseguia ganhar seu próprio sustento na terra natal podia achar um pedaço de terra e ter uma vida mais digna em Canadá.
Os relatos de Kanada
Conforme repercute o The Canadian Jewish News, as irmãs húngaras Rozsi e Lili Berkovits deram o seguinte testemunho sobre viver em Kanada: "Este era um lugar invejável: era possível comer algumas porções extras de comida e não era necessário passar fome. Separamos (através) das bagagens que os transportes (trouxeram) para cá; sempre encontrávamos comida neles, que podíamos apreender secretamente. Isso nos salvou de morrer de fome."
Freedland corrobora dizendo que em Kanada havia comida por todo o lado, os prisioneiros só precisavam saber a hora certa de roubá-la. "Era por isso, com toda a certeza, que as mulheres de Kanada tinham a aparência de mulheres de verdade, não eram os espectros magros e raspados das Muselmänner".
Aqui se encontrava de tudo, desde roupas, comida e roupa de cama, até às joias mais caras, cartas preciosas e fotografias. Vimos as coisas mais lindas, pois cada um trouxe os melhores pertences que tinha", descreve outro sobrevivente do Kommando Kanada.
O trabalho do Comando de Remoção ainda permitia algumas regalias: as mulheres que trabalhavam na seleção podiam usar roupas e sapatos novos, além de vestirem roupas de baixo limpas, aponta o autor de "A Arte da Fuga".
"Podiam dormir com camisolas de seda e em lençóis de algodão. Tinham acesso a perfumes e meias de seda e, se trabalhassem no turno da noite, poderiam passar a tarde tomando banho de sol, refrescando-se com água corrente ou lendo um dos muitos livros que os condenados tinham guardados nas malas", escreve.
Ainda ao The Canadian Jewish News, outro sobrevivente relata: "O trabalho basicamente não era difícil". Mas uma condição tornava tudo terrível: o crematório de Auschwitz ficava em frente às instalações de Kanada. "Podíamos ver como selecionavam cada transporte que chegava. Podíamos ver os idosos e as crianças entrando pelo portão do crematório, ouvíamos os gritos horríveis, mas nunca vimos ninguém saindo".
No geral, foi fácil para nós porque tínhamos grandes quantidades de alimentos roubados. Mas ninguém conseguia comê-lo, ouvindo todos aqueles gritos, respirando um ar que cheirava a carne humana queimada", finaliza.