Picasso: estética e política na obra do maior artista do século XX
Aventuras Na História
“Quando se inicia um quadro, encontram-se frequentemente coisas belas. Devemos então nos defender delas, destruir o quadro, refazê-lo diversas vezes,” afirmou Picasso no Cahiers de l’art. No processo de fruição da arte, saber das circunstâncias da criação e das motivações que levaram o artista no momento da execução da obra é parte considerável para um diálogo com o objeto artístico. O conhecimento nos dá outra dimensão na relação com a obra para além da mera observação. Todavia, desvendar o maior artista do século XX é tarefa gigantesca.
Pablo Ruiz Picasso nasceu em Málaga, Espanha, em 1881. Ao falecer, em 9 de abril de 1973, portanto há cinquenta anos, deixou-nos um legado artístico material assim descrito em seu inventário: 1885 pinturas, 7089 desenhos, 3222 peças de cerâmica, 7411 gravuras, 1723 pedras, 1228 esculturas, 11 tapeçarias mais tapetes, esboços e cenários teatrais. Esses números impressionam, mas certamente não foi a quantidade que levou Carlo Giulio Argan a dizer que Picasso caracterizou o século XX. Para Umberto Eco “Picasso foi o século XX, porque entendeu a arte como violação das linguagens tradicionais”.
Picasso é em si uma história da arte. O artista nunca negou o uso de referências, citações, recriações, assumindo influências em suas obras. Para ele, o ofício do artista compreende estar “constantemente em alerta, diante dos dilacerantes, ardentes ou doces acontecimentos do mundo refletindo-os na forma como realiza suas obras”. Duas obras paradigmáticas nos permitem entrar no universo criativo e perturbador de Picasso: Em Les Demoiselles d’Avignon ele transforma a estética vigente e propõe novas possibilidades de representação da figura; em Guernica, é o artista como ser político, utilizando a linguagem para representar, literalmente, o mundo em crise perante o advento da 2ª Guerra Mundial.
Obra audaciosa e perturbadora
Precisamos exercitar a imaginação e colocarmo-nos em 1906, quando Picasso começou a preparar a tela Les Demoiselles d’Avignon, abandonando-a em 1907, como está ainda hoje. O Impressionismo ainda pulsava na virada do século e público e artistas de então estavam imersos em obras do Fauvismo, com suas cores puras e perspectiva exagerada. Da Alemanha vinham notícias de obras expressionistas, carregadas emocionalmente. Em Paris, Picasso estava inquieto. Já passara pelas fases azul e rosa e queria mais, sair do que hoje chamaríamos de zona de conforto.
O estúdio de Picasso, o Bateau Lavoir, na ladeira de Montmartre, era um ambiente frequentado por pintores, escritores, poetas e críticos de arte. Discutia-se, entre outras coisas, o caráter revolucionário da pintura, sua autonomia perante outras expressões artísticas. A pintura poderia ir além da percepção, sendo conceitual. André Salmon nos deixou um relato precioso sobre aquele momento e a criação da obra precursora do Cubismo, em livro publicado em 1912 (La jeune Peinture Française):
“...Picasso sentia uma certa inquietude. Virou suas telas para a parede e abandonou os pinceis. Durante longos dias e muitas noites, desenhou, concretizando o abstrato e reduzindo o concreto ao essencial”. Salmon conta ainda que Picasso já estava apaixonado pela escultura africana, colocando-a acima da arte dos antigos egípcios. “As imagens polinésias ou daomeanas pareciam-lhe racionais. Renovando sua obra, Picasso fatalmente nos daria uma aparência do mundo não conforme à visão que aprendemos”.
Apresentada aos amigos em seu primeiro estágio, a tela decepcionava, causava espanto. O artista voltava ao trabalho. Se no início foram seis moças, logo passaram a ser cinco, com narizes frontais em forma de triângulos que, em seguida, apareceram brancos e amarelos. As cores variavam. Azuis, brancos, amarelos, rosas, cinzas... Dias e noites intermináveis de trabalho incessante. Salmon relata que o primeiro título sugerido para a tela foi O Bordel Filosófico. No final ficou Les Demoiselles d’Avignon (As Moças de Avignon), referência a uma rua de Barcelona onde havia um bordel frequentado por Picasso.
John Goldin, em Conceitos da Arte Moderna, nos apresenta uma intensa análise da tela. Estão nela influências perceptíveis do simbolismo em Gauguin e as formas angulares e alongadas que remetem a El Greco. São visíveis os elementos extraídos da pintura de vasos gregos, da escultura arcaica grega e da arte egípcia, entre outros. Na composição, o protótipo evidente está em Cézanne (As banhistas) e o contato do pintor estabelecido com as esculturas africanas aparece no rosto das duas moças da esquerda. Após apontar tais elementos presentes no quadro de Picasso, o autor sugere que nosso olhar vá para a figura agachada à esquerda, a grande inovação estética proposta pelo pintor.
“É como se Picasso tivesse andado 180 graus em redor do seu modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem”, escreve Golding.
A figura, vista pelas costas, frente e perfil, rompe com a perspectiva tradicional, resultando no que posteriormente os críticos chamaram de visão simultânea. Desde o Renascimento não ocorria ruptura tão audaciosa e perturbadora na história da arte.
Guernica, o artista é ser político
Criado em 1920, o partido nazista cresce rapidamente e em 1932 já domina o parlamento alemão com 230 representantes. Aliados ideológicos do general Francisco Franco, autor do golpe que deu origem à Guerra Civil Espanhola, os nazistas apoiaram o general e, em 1937, a aviação alemã bombardeou Guernica, pequena vila basca no norte da Espanha, matando milhares de civis. Picasso já havia se posicionado contra o general Franco.
Em janeiro de 1937 Picasso publica no New York Times uma gravura em nove sessões, remetendo a quadrinhos de forma satírica e caricatural, denominada Sonho e Mentira de Franco. Residindo em Paris e já famoso e respeitado, Picasso havia sido convidado pelo governo da República Espanhola para criar um painel para o seu pavilhão na Feira Internacional de Paris e, sabendo do bombardeio sobre Guernica ocorrido em 26 de abril, o pintor altera os planos. Em junho o mundo conheceria Guernica, a tela que é um grito contra a guerra, todas as guerras!
Guernica não descreve uma guerra, é um grito, escreveu Maurice Raynal. Nas palavras de Frederico Moraes, “Guernica não é a descrição de um bombardeio, mas um grito calculado, que carrega atrás de si, ou consigo, uma rigorosa estrutura plástica”. Não um fato, mas a sua reinvenção plástica, conclui o crítico brasileiro. O próprio pintor explicitou: “No quadro Guernica e em grande parte de minha obra, procurei exprimir claramente o meu horror à casta militar que mergulhou a Espanha num mar de pranto e morte”.
Contam os biógrafos que o general alemão Otto Abetz, governador da cidade de Paris durante a ocupação, dirigindo-se a Picasso, lhe perguntou: “Foi o senhor quem fez este horror?” ao que Picasso respondeu: “Não, senhor Embaixador. Esse horror foi feito pelos senhores!”.
Picasso mergulhou dois meses em trabalho intenso na criação de Guernica. Pintada todo em preto e branco, o pintor pensava em colocar cor. O poeta José Bergamín, adido cultural na embaixada da Espanha, em Paris, conta ter sugerido cobrir a obra com papel colorido nas partes indicadas pelo artista. Picasso fez um esboço colorido da obra. Após recortarem e cobrirem conforme o indicado, tarefa que levou dois dias, Picasso viu o resultado e ficou refletindo. Dias depois o quadro era exposto no Pavilhão da Espanha tal como havia sido pintado, em preto e branco.
A simbologia em Guernica é imensa. O touro é o mal, o homem; o cavalo é a inocência, a mulher. Esses, touro e cavalo, fortes referências espanholas. No centro da imagem, a vela erguida pelo braço da mulher nos leva a ter esperança. O lustre remete ao olho que tudo vê, o olhar divino. Abaixo do touro, uma mulher segurando uma criança nos lembra a Pietá. Os horrores da guerra ainda estão nos fragmentos de corpos sendo queimados, mutilados. Ao elaborar uma composição em que não são vistos os aviões, o pintor eleva ao máximo a tensão e a sensação de desespero.
Há muitas outras obras de Picasso que nos levam a pensar sobre a guerra, ou sobre a paz. Sobre a questão, disse o pintor ao se filiar ao Partido Comunista, em 1944: “Eu não pinto a guerra porque não sou o tipo de pintor que, como um fotógrafo, vai à cata de um tema. Mas não há dúvida de que a guerra existe em meus quadros”. Guernica só foi para solo espanhol após a morte de Franco. Hoje está no Museu Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, em sala única, onde se pode ver a estética e a política sintetizadas em uma tela de Picasso, como se o artista estive ali, nos repetindo eternamente: “A pintura nunca é prosa. É poesia que se escreve com versos de rima plástica”.
VALDO RESENDE escreve cotidianamente sobre pintura, escultura, música, teatro, literatura, quadrinhos e poesia. Mestre em artes visuais, dramaturgo e professor, é autor do romance “dois meninos – limbo”, do livro de contos “A sensitiva da Vila Mariana” e da coletânea de crônicas, contos e poesias “O vai e vem da Memória”.