O português brasileiro em Portugal
Mega Curioso
No último dia 10/11, uma reportagem do portal português Diário de Notícias alertava para o fato de que “há crianças portuguesas que só falam brasileiro”. Essa é a preocupação de alguns pais e responsáveis que notaram diferenças na fala dos filhos em Portugal: “Dizem grama em vez de relva, autocarro é ônibus, rebuçado é bala, riscas são listras e leite está na geladeira em vez de no frigorífico”. O fenômeno acontece em razão do contato muito próximo das crianças com vídeos de youtubers brasileiros famosos, como Luccas Neto. Na pandemia, o acesso a esses vídeos aumentou consideravelmente, a ponto de influenciar a fala dos pequenos, que passaram a falar “brasileiro”.
Na reportagem, alguns pais relataram o quanto o contato com as redes sociais afetou a fala dos filhos. "Todo o discurso dele é como se fosse brasileiro. Chegamos ao ponto de nos perguntarem se algum de nós era brasileiro, eu ou o pai", conta uma mãe.
Mas, afinal, Portugal e Brasil não têm o mesmo idioma oficial? Em tese sim, principalmente depois do Novo Acordo Ortográfico de 2009, que teve o objetivo de unificar a escrita dos países de língua portuguesa . Na prática, porém, as diferenças se mantêm e são bastante acentuadas.
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Que português deve ser usado na escola?
Durante a pandemia, os estudantes passaram das aulas presenciais ao modelo online. Foi nessa oportunidade que a psicóloga goiana Adriana Campos presenciou uma conversa entre a filha e a professora de português. A jovem questionava por que sua nota havia sido menor do que a da colega portuguesa, com quem fez um trabalho em dupla.
“A professora falou que o trabalho estava excelente, elogiou a criatividade das duas, mas disse para a minha filha: 'Só que você, infelizmente, ainda fala esse português inapropriado, esse português brasileiro. E você precisa aprender a falar direito'. Eu não conseguia acreditar”, afirmou Adriana.
O relato da psicóloga se soma a outras reclamações de brasileiros que afirmam sofrer discriminação em razão de sua variante dialetal. Há depoimentos inclusive de alunos universitários, que temem receber notas mais baixas ao usar a variante brasileira. O receio é tão grande que muitos estudantes chegam a entregar trabalhos em inglês (o programa do Erasmus promove a mobilidade acadêmica entre países europeus, por isso em muitas universidades portuguesas é possível entregar trabalhos escritos em inglês).
Essas atitudes de preconceito linguístico não estão de acordo com a política de acolhimento e incentivo à interculturalidade de Portugal. O secretário de Estado da Educação de Portugal, João Costa, conta que os documentos orientadores para o ensino da língua portuguesa “preveem o domínio do português europeu padrão, integrando também a consciência da diversidade de registros e de características das variantes faladas pelo mundo”.
O “verdadeiro” português
Diante desse alvoroço sobre as mudanças na língua em Portugal, é interessante chamar a atenção para o fato de que a diferenciação entre o português brasileiro e o português europeu é assunto recorrente na área da linguística. Desde 1980, pesquisadores buscam estudar por que essas duas línguas estão se afastando.
Muitos acreditam que é o português do Brasil que se diferenciou e adquiriu características próprias. No entanto, alguns estudos sugerem que não é bem assim. No vídeo As marcas do português brasileiro, linguistas comentam sobre o fato de que os colonos portugueses que chegaram ao Brasil no século XVI transmitiram aos indígenas o idioma que falavam em Portugal. E, analisando documentos escritos da época, é possível perceber que aquele português se assemelha muito mais ao brasileiro do que ao europeu.
Diante dessa constatação, podemos dizer que o “verdadeiro português” (e muitas aspas aqui!) é o falado no Brasil. Foi o português europeu que sofreu modificações ao longo do tempo e, principalmente a partir do século XVIII, acabou se afastando daquela língua já falada no século XVI.
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E onde estão as evidências?
Um dos casos interessantes que vale comentar é a diferenciação entre o gerúndio (no Brasil) e o infinitivo (em Portugal). Os brasileiros usam de forma recorrente a estrutura “estou dançando”, por exemplo, enquanto para os portugueses o mais comum é “estou a dançar”. Analisando um dos textos mais famosos em língua portuguesa, Os Lusíadas, podemos encontrar muitas e muitas estruturas de gerúndio. E a estrutura do infinitivo? Quase nenhuma! A língua portuguesa empregada nessa obra é muito mais semelhante ao português hoje chamado “brasileiro” do que ao português europeu. Essa é uma das evidências de que a língua na Europa sofreu muito mais modificações do que no Brasil.
Aqui, vale chamar a atenção para o fato de que o português no Brasil também sofreu alteração ao longo do tempo, principalmente com a chegada de imigrantes a partir do século XIX.
Preconceito linguístico
Sendo assim, a afirmação de que o português europeu é o “certo” e o português do Brasil é o “errado” não faz nenhum sentido. Primeiro, nenhuma das formas é certa ou errada, ambas são variantes de uma mesma língua inicial. Segundo, se formos apelar para a língua mais “tradicional”, as marcas do português brasileiro indicam que ele está muito mais próximo daquele português que veio de Portugal no século XV do que o falado na Europa atualmente.
Então, vale a pena discutir as mudanças sofridas pelas línguas ao longo do tempo? Mas é claro! Agora, temer pelos filhos que falam “brasileiro” em razão da influência de youtubers não tem lógica alguma. Todas as línguas vivas estão em constante transformação. Influências linguísticas e sociais diversas trazem mudanças a qualquer idioma, por que com o português seria diferente?
No caso do receio dos pais portugueses, quem sabe a questão não seja tanto linguística, mas social. Mas aí caímos em outra temática, assunto de uma próxima coluna!
Até breve!
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Mariana Bordignon S. de Souza, colunista semanal do Mega Curioso, é formada em Letras — Português, pós-graduada em Docência Universitária e especialista em Gestão de Projetos. Está envolvida com o mercado editorial há mais de 10 anos.