Submisso ou oprimido? Como o Rei Pelé se portou diante o Ditadura
Aventuras Na História
“A Copa do Mundo foi importante para o país. Mas, naquele momento, eu não queria ser Pelé”. A frase dita por Edson Arantes do Nascimento abre o documentário 'Pelé' (2021) dos diretores britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas — disponível na Netflix.
Mas o que levou o maior jogador da história do futebol a se negar a ser quem sempre foi? Até então bicampeão mundial com a Seleção Brasileira, em 1958 e 1962, Pelé se encaminhava para a quarta e última Copa do Mundo de sua carreira. O México seria palco do fim e do ressurgimento do Rei.
“Fiquei numa angústia, porque eu não queria jogar a Copa de 70. Eu não queria passar o que eu passei na Inglaterra. Eu fiquei em dúvida, um pouco de preocupação, um pouco de saudade. Eu só queria ser lembrado”, recorda.
O rei Pelé/ Crédito: Divulgação/Netflix
Mas como poderíamos esquecê-lo? Dentro de campo, Pelé foi magistral, único. O maior de todos. Dono de recordes inquebráveis, lances inesquecíveis, de uma mística passada de geração em geração. Você pode não tê-lo visto em campo, mas sabe o que ele era capaz de fazer. De tudo o que conquistou.
Um adversário implacável
Para entender a importância de Pelé, precisamos lembrar sua trajetória. Um menino negro do interior de Minas Gerais que disputou suas primeiras partidas com os pés descalços, mas que nunca deixou de sonhar. Muito pelo contrário, Pelé queria transformar em realidade tudo aquilo que sempre imaginava. Foi assim quando, aos 16 anos, cumpriu a promessa feita a seu pai, antes inconsolável com a perda da Copa de 1950.
Pelé não só foi o protagonista de nossa primeira estrela no peito, como o responsável por nos fazer sentirmos brasileiros. Nascidos no país do futebol. Uma figura muito maior do que pensou que seria. Com adversários muito mais implacáveis fora dos gramados.
Uma das grandes chagas do Rei diz respeito a sua falta de luta. “Eu amo o Pelé, mas não posso deixar de criticá-lo”, diz o ex-jogador Paulo Cézar 'Caju' Lima no documentário, se referindo ao fato do eterno camisa 10 da Seleção brasileira jamais ter politizado contra as barbáries da ditadura Militar pós golpe de 64.
O rei Pelé/ Crédito: Divulgação/Netflix
“Eu achava que ele tinha o comportamento do ‘negro sim, senhor’. O negro que é submisso. Que aceita tudo. Que não contesta. Que não critica. Que não julga”, prossegue o ponta-esquerda que atuou nos quatro grandes do futebol carioca.
É uma das críticas que eu mantenho até hoje. O Pelé, uma opinião dele relacionada a isso, mexeria muito. Principalmente no Brasil”.
Na produção, o Rei do futebol aponta que sabia das perseguições e torturas cometidas pelo regime. “Se eu disser que não sabia [que existiam torturas], que nunca fiquei inteirado disso, eu estaria mentindo. É uma mentira”.
“Agora, tinha muitas coisas também que a gente não tinha certeza se era verdade ou se era mentira, porque o Santos excursionava, você estava na Europa, ou em qualquer outro país, aí vinha uma notícia. Como que você vai saber se é verdade ou se é mentira?”, questiona.
Aqui no Brasil, a gente era sempre orientado a tomar cuidado. Não sair do hotel. Eu me sentia preocupado”
Omisso ou oprimido?
Com o fracasso da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1966 e com a implementação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, o regime sabia que o esporte poderia ser uma arma para acalmar a população.
A militarização ficou mais evidente com a troca de comando técnico, saindo o comunista assumido João Saldanha e entrando o Mário Jorge Lobo Zagallo; e também com o presidente Emílio Garrastazu Médici recebendo os tricampeões mundiais em uma propaganda política travestida de celebração patriótica.
Fui informado que o presidente [Médici] queria falar comigo. Queria me cumprimentar. Aí eu fui. Eu nunca fui forçado a fazer nada. Nunca, nunca”, aponta Pelé.
Em contrapartida, o jornalista Juca Kfouri, outro entrevistado da produção, recorda da pressão que era jogada sobre Pelé. Afinal, será que o ex-jogador realmente tinha a escolha de rejeitar um encontro presidencial?
“Ele não podia ser quem ele é e voltar as costas para um presidente da República. Mas você pode dizer: 'Muhammad Ali foi diferente’. Muhammad Ali foi diferente e eu bato palmas pro Muhammad Ali”, concorda Kfouri.
“Muhammad Ali sabia que, ao ser preso por deserção, ele não corria o menor risco de ser maltratado, de ser torturado. O Pelé não tinha essa garantia. Ditaduras são ditaduras, só quem viveu sabe onde é que arde”, ressalta.
O rei Pelé/ Crédito: Divulgação/Netflix
Kfouri ainda aponta que, embora Pelé não goste de tocar nesse assunto, “recados foram dados pela Ditadura, que era bom ele jogar a Copa”.
A redenção
Àquela altura, muitos contestavam se Pelé realmente tinha condições de dar a volta por cima e superar as lesões que o perseguiram em 1962 e 1966. Talvez, por tudo isso, Pelé, mesmo que por um breve período de tempo, não queria ser Pelé, como o próprio afirmou.
O desabafo do camisa 10 é inegável. Após o apito final que sacramentou a vitória por 4x1 contra a Itália, no Estádio Azteca, no México. “Eu não morri”, gritou três vezes, conforme recorda Rivellino.
“Eu sou um cidadão brasileiro. Eu quero o melhor para o meu povo. Eu não era Super-Homem, eu não era milagroso. Eu não era nada. Eu era uma pessoa normal que Deus deu a felicidade, o dom de jogar futebol. Mas eu tenho absoluta certeza que eu ajudei muito mais o Brasil com meu futebol, com a minha maneira de viver, do que muitos políticos que ganham e trabalham para fazer isso”, encerra Pelé.