Política em momentos de solidão: o exílio de Napoleão em Elba
Aventuras Na História
Em 20 de abril de 1814, uma semana depois de ter abdicado da coroa e de ter tentado abdicar da própria vida, tomando veneno, Napoleão Bonaparte e sua comitiva deixaram Fontainebleau em 14 carruagens, partindo em direção à cidade costeira de Saint-Tropez, de onde cruzariam o Mar Mediterrâneo até Elba.
Além de assessores, criados, um farmacêutico e um médico, acompanhavam-no o general Bertrand, que lutara ao seu lado desde a campanha do Egito, o general Drouot, seu ajudante de campo, e Pavel Jerzmanowski, major da Guarda Imperial Polonesa, fiéis companheiros. A comitiva incluía ainda um coronel e três generais estrangeiros, cuja missão era vigiar e proteger o imperador em nome da Grã-Bretanha, da Áustria, da Prússia e da Rússia, as potências que haviam vencido seus exércitos e ocupado a França.
Aclamado pelo povo até a cidade de Lyon, as saudações das ruas deram lugar a gritos de “abaixo o tirano!” e a arremessos de pedras, que destruíram as janelas da carruagem do imperador, obrigando-o, por medida de segurança, a vestir o uniforme de um ajudante de campo austríaco até seu embarque na fragata HMS Undaunted.
Após quatro dias e meio de viagem, o imperador e sua comitiva chegaram a Portoferraio, capital de Elba, a maior das sete ilhas localizadas entre a Córsega e a Itália. Com 13.700 habitantes, área de apenas 224 km² e uma economia baseada na pesca do atum e na exploração de sal e ferro, desde a época dos etruscos e dos romanos, a pequena ilha se transformara no Principado de Elba, ostentando uma bandeira criada pelo próprio imperador. Embora tivesse lido sobre a ilha, o homem que fora senhor de um continente teria estremecido ao notar o grande abismo que separava a fragata inglesa do porto sujo e malcheiroso onde desembarcaria.
A total ignorância quanto a práticas de higiene, o esgoto a céu aberto e pântanos não drenados provocavam doenças de pele, tifo, disenteria e febres, dentre outras, enquanto a poeira avermelhada do minério de ferro cobria a paisagem e as pessoas.
O imperador se instalou no prédio da prefeitura. Mais tarde, adaptaria edifícios, transformando-os na Palazzina dei Mulini, sua residência oficial, embora também utilizasse outras quatro propriedades para estadias curtas em outras partes da ilha.
Nas primeiras duas semanas, visitou todas as comunidades, impressionando seus novos súditos com o conhecimento que adquirira sobre a história de Elba e os antigos costumes dos seus habitantes, enquanto imperceptivelmente conquistava mentes e corações, em francês ou italiano, com seu grande carisma.
Após quase um mês, o major francês Canbronne desembarcou na ilha, trazendo uma Guarda multinacional de 566 veteranos, os cavalos do imperador e veículos de tração animal. Nomeado comandante de um Exército que possuía aproximadamente 1600 homens, ele se reportaria ao general Drouot, governador militar do principado, ficando também responsável pela administração dos diversos fortes da região, construídos por antigos conquistadores ao longo de séculos.
A Marinha contava com um brigue, embarcação com dois mastros e velas redondas, equipada com 16 canhões; duas feluccas, pequenos barcos com uma ou duas velas trapezoidais, bem como dois xavecos e uma polaca, embarcações mercantis com três mastros que podiam transportar 300 homens cada. As seis embarcações tinham uma tripulação estimada de 100 homens.
Edificação do futuro
A administração civil do principado ficava a cargo do general Bertrand, a quem se reportavam o conselho de Estado, a corte de Justiça, a corte de apelação, a câmara de comércio, a administração dos estados, bem como a intendência, em minúscula réplica da administração imperial francesa.
O Tesouro era comandado pelo barão de Peyrusse, que trouxera da França 3,8 milhões de francos, quantia que seria mantida pelo imperador como um fundo de reserva até que Luís XVIII começasse a lhe pagar a pensão anual de 2 milhões de francos, conforme estabelecido no Acordo de Fontainebleau.
As despesas relativas a funcionários públicos, cortes de Justiça, coletores de impostos e clero somavam aproximadamente 120 mil francos, após a dedução de recebimentos referentes a impostos sobre propriedades, taxas de alfândega, registros, selos etc. As receitas da ilha totalizavam 350 mil francos: 300 mil provinham das minas de ferro, 30 mil da pesca do atum e 20 mil da exploração de sal.
Esses números não contemplavam as grandes despesas iniciais que o imperador tivera com construções e reformas, nem as despesas correntes com a melhoria da infraestrutura de defesa de Elba, funcionários civis, militares, armamentos, estábulos, ou com a ocupação de Pianosa, uma pequena ilha vizinha, que demandou a instalação de uma base de defesa, alojamentos militares e uma igreja, visando a futuros projetos de colonização, uma micro e sutil referência à visão geopolítica de Sua Majestade.
Cercado de engenheiros, arquitetos e outros especialistas, o imperador equacionava os problemas estruturais da ilha, demolindo e reformando o passado, ao mesmo tempo que impelia todos a edificar um futuro para o pequeno principado.
Afirmando que sem estradas não haveria civilização e que sem elas não seria possível defender a ilha, modernizou as existentes e concebeu outras, construindo também uma pequena avenida Champs Élysées, “onde os cidadãos pudessem passear aos domingos”.
As autoridades de Elba foram notificadas a varrer as ruas e os moradores a dotar suas casas com aparelhos sanitários, passando-se também a cobrar multas dos que insistissem em jogar lixo pela janela. O sistema de saneamento foi melhorado e os pântanos foram drenados, eliminando-se, assim, os mosquitos. A ilha se transformara num canteiro de obras, onde pedreiros e soldados trabalhavam juntos, como uma fugaz colmeia, cuja abelha-rainha era na verdade um zangão-imperador.
A exemplo do que fizera no Egito, para onde levara cientistas, médicos, farmacêuticos e administradores hospitalares, o imperador criou um hospital para leprosos e uniu um hospital militar com outro civil para obter maior eficiência. Criou ainda um centro de quarentena para navios infectados ou suspeitos, ciente dos efeitos das doenças.
Embora viral, a febre amarela já havia dizimado milhares dos soldados que enviara ao Caribe, facilitando a independência pioneira do Haiti, em 1804. Em outra medida profilática, visando melhorar o abastecimento de água da ilha, prospectou e desobstruiu áreas de mananciais, cavou poços e construiu cisternas, o que também propiciou a criação de uma brigada de incêndio, trazendo mais segurança à capital do principado, onde as casas se amontoavam por proteção.
Com o intuito de trazer arte à ilha, Napoleão cedeu o prédio de uma igreja desconsagrada para a criação de um teatro, onde sua irmã Pauline organizava eventos, sonhando com apresentações de companhias teatrais francesas que jamais viriam. Fundou também a Scuola di Disegno e Belle Arti, valendo-se dos artistas que trouxera para decorar suas propriedades. Um deles decoraria o teatro e pintaria as cortinas que ainda hoje insistem em mostrar um Apolo que remete ao imperador.
Napoleão tornara-se um leitor entusiasta de obras sobre agricultura, botânica, saúde pública e edificações, dentre outras. Como o milho consumido em Elba era importado, o que encarecia o pão, incentivou seu cultivo, bem como o de trigo, oliva, legumes, uvas e árvores frutíferas, como laranjeiras e principalmente amoreiras, visando à criação do bicho-da-seda, que prosperava na Itália desde o século 12. No projeto de colonização de Pianosa, previra ainda plantar abetos e carvalhos, bem como criar um retiro, onde os idosos do principado pudessem se dedicar à jardinagem.
Ao deixar Fontainebleau, trouxera consigo 186 títulos, em 965 volumes, incluindo livros sobre a história da Grécia, de Roma, da Córsega e da França, gênios militares, direito francês, literatura clássica, bem como as obras completas de Voltaire e Rousseau, dentre outros. Essa biblioteca, ampliada para 2.300 volumes pelo próprio imperador, que considerava os livros sua maior felicidade, seria transformada num legado eterno à disposição dos seus antigos súditos em Elba.
Para enfrentar a solidão
Essa hiperatividade talvez objetivasse mitigar o revés do exílio e a solidão na ilha. Maria Luísa, sua segunda esposa, refugiara-se com o pequeno filho do casal no palácio da sua família em Viena, sem jamais responder às muitas cartas em que ele lhe pedia que viesse a Elba. Como seus três irmãos estavam impedidos de vê-lo, apenas sua mãe, uma irmã e Maria Walewska, a condessa polonesa com quem tivera outro filho, viriam visitá-lo, além de algumas seletas admiradoras.
Muitos outros visitantes vinham encontrar o imperador, incluindo simpatizantes que o atualizavam sobre a situação política na França, pessoas do continente que lhe prestavam serviços de espionagem, outras que queriam lhe pedir ou vender alguma coisa, antigos soldados que tinham servido sob suas ordens e até mesmo turistas, principalmente britânicos. Amiúde, músicos insistiam em improvisar serenatas indesejadas sob sua janela, obrigando-o a solicitar o auxílio da polícia.
Outras conexões com o continente incluíam o recebimento de 5 mil cartas de soldados e oficiais de vários países, bem como a leitura dos principais jornais da França, Alemanha e Áustria, que eram remetidos a um assinante fictício em Nápoles e de lá reenviados à ilha por um portador. Desse modo, apesar da vigilância constante do coronel britânico Campbell, uma rede lhe fornecia informações estratégicas, como o projeto das potências europeias de deportá-lo para uma ilha no Oceano Atlântico.
No final de 1814, o imperador já tinha gastado mais da metade dos 3,8 milhões de francos do seu fundo de reserva, uma vez que Luís XVIII se recusava a lhe pagar a pensão de 2 milhões. O saldo seria suficiente para cobrir o orçamento por apenas mais um ano, obrigando-o a cortar despesas com correio e estábulos, demitir funcionários e pagar 50% do salário dos militares em dinheiro e o restante em títulos sacados contra o Tesouro francês, onde, conforme o acordo, teria créditos de 18 milhões de francos.
A questão financeira e a ociosidade desmoralizavam soldados acostumados aos campos de batalha, aumentando o número de deserções e, portanto, reduzindo a suposta proteção que o já diminuto Exército proporcionava ao imperador. Sob risco iminente de abdução, ele não tinha muitas opções em Elba, que, afinal, sempre fora uma mera base de observação temporária, um breve intervalo entre disputas.
De volta à França
Numa noite de tempestade, a maior embarcação do principado foi lançada sobre rochas, por capricho da natureza ou plano bem engendrado, demandando reparos. Premeditado ou não, o episódio tornou-se um álibi verossímil para o início da discreta e cautelosa preparação do retorno da corte de Elba à França. Apesar dos múltiplos olhos a serviço das potências europeias, as peças do jogo voltavam a ser movidas.
Quando o imperador foi informado de que o coronel Campbell permaneceria fora da ilha por mais de uma semana em viagem à Itália, deu ordens para que os reparos fossem rapidamente concluídos e a embarcação fosse pintada de amarelo e preto, as cores dos brigues britânicos. Ao longo das nove noites seguintes, madeira, munições e provisões seriam cuidadosamente embarcadas nesta e em outra embarcação menor.
Outras cinco, incluindo duas alugadas, compunham a frota imperial que transportaria cavalos, tripulações e tropas. A população de Elba fora informada da partida iminente e se reunira no porto. Segundo o autor Paul Gruyer, no momento em que o imperador subiu a bordo do brigue, as tropas entoaram a Marselhesa, imediatamente seguidas pelo povo, em eloquente demonstração de devoção e respeito. No dia 1º de março de 1815, Napoleão retornaria à França com o intuito de retomar o controle do jogo do poder no país e na Europa. Os dados seriam lançados mais uma vez!
Odair Chiconelli é professor de língua inglesa e pesquisador de história. Em homenagem ao bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, escreveu uma trilogia sobre o imperador especialmente para a Aventuras na História. O texto acima é a segunda parte. Confira a primeira parte do texto clicando aqui.