Herança Digital: como proteger perfis sociais e criptomoedas
Tecmundo
A maioria de nós não quer pensar que podemos morrer amanhã, não é mesmo? Quanto mais jovens, maior a sensação de que somos invencíveis, fortes e que não ficaremos doentes. É, mas o coronavírus veio para mostrar que estamos errados, já que muita gente nova infelizmente faleceu. A única certeza que temos é que um dia será “beijinho, beijinho, tchau, tchau” e ninguém até agora escapou dessa.
Mas, mesmo assim, ainda tem gente que pensa: “Ah, mas eu sou muito novo(a) ainda, vou demorar para morrer. Daqui uns 30 anos eu penso nisso”. Talvez por isso, não se preocupem em proteger agora os seus bens.
Com as novas tecnologias e as mudanças da nossa cultura, temos migrado cada vez mais rápido para o digital, e a pandemia do coronavírus acelerou ainda mais essa mudança, e muita gente passou a ganhar muito dinheiro de outras formas além daquelas profissões “tradicionais”. Hoje, as profissões que estão em alta são as de influenciadores, investidores e corretores de criptoativos, gamers, que podem ganhar muito dinheiro na nova economia.
Ok, mas então, a quais bem eu estou me referindo?
Vamos pensar nas seguintes situações: um grande influenciador digital, ou o administrador de um perfil com milhões de seguidores, milhares de postagens, patrocínios, e que fatura muito com publicidade por mês, tem um piripaque e falece.
O que acontece com o(s) perfil(s) na(s) rede(s) social(is)? Com tudo o que ele ou ela criou durante todo esse tempo? Todo o conteúdo, todas as fotografias, os comentários, as postagens, as hashtags, as marcas citadas, as pessoas e lugares mencionados, as campanhas publicitárias que essa pessoa participou? Toda influência da pessoa nas redes sociais? Tudo isso é perdido? É apagado de uma hora para outra, ou será que isso tem algum valor monetário e pode ser transferido para os herdeiros continuarem a usar e a se sustentarem?
Outro caso muito interessante: os gamers (é profissão séria sim, viu mamães e papais que não acreditam nisso) que investem muito dinheiro em jogos, equipamentos virtuais, e que têm avatares e perfis dentro de redes de games que foram construídos com muito investimento? Isso tudo se perde ou tem um valor econômico que pode ser transferido para terceiros?
E aquelas pessoas que investem em criptoativos, como eu? Bitcoin, Solana, Ethereum, Cardano? Ou quem (também como eu) investe em NFT – no fungible token? Tudo isso vai para o espaço ou são bens com valor e que podem ser divididos entre os herdeiros dessas pessoas depois que eles falecerem?
Já passou da hora de pensar nisso pessoal, então vamos ver o que é possível fazer, de uma forma bem resumida porque não dá para falar tudo em um artigo aqui no Tecmundo. Seria preciso uma série de artigos sobre o assunto.
De cara, já deu para perceber que tudo isso tem um valor monetário, e que são bens patrimoniais que podem ser transferidos e separados entre os herdeiros da pessoa que faleceu, ou vendidos a depender do caso. E podem ser conservados com os herdeiros para que ainda geram renda para a família, mas é preciso que sejam tomados alguns cuidados para tudo isso não se perder e para que algumas pessoas sejam protegidas.
Mas olha pessoal: herdeiros não são só os filhos, viu! A depender do caso, podem ser os pais, esposa, marido, sobrinhos, netos, bisnetos, avós, irmãos, e até mesmo pessoas que não são da família. A pessoa pode fazer um testamento deixando parte desses bens para quem quiser. Até para aquele amiguinho que você tinha no pré-primário e que nunca mais viu.
Vamos falar, em primeiro lugar, dos perfis das redes sociais. Qualquer rede social, seja Instagram, Youtube, Twitter, Pinterest, Facebook e qualquer outra que exista agora ou que venha a existir no futuro.
Os perfis das redes sociais são uma nova classe de verdadeiros bens incorpóreos que a gente não pode pegar. Se fosse corpóreo, poderíamos tocar, sentir), mas seu detentor, nos termos do inciso II do artigo 83¹ do Código Civil, tem os direitos reais sobre ele, que podem ser exercidos após o perfil ser criado, e são passíveis de cessão (não se fala em venda porque a venda é só de bens corpóreos), infungíveis (porque não podem ser substituídos por outro), e com valor econômico (já que esses perfis podem gerar dinheiro para os seus “donos”).
Os detentores dos direitos sobre os perfis não têm um direito eterno e inquestionável de uso. Conservam esse direito enquanto estiverem cumprindo as regras das redes sociais, e caso haja desrespeito a essas regras, o perfil pode ser bloqueado ou banido (foi o que aconteceu com o canal Xbox Mil Grau).
E algumas redes têm regras que permitem que depois do falecimento do “proprietário”, aquele perfil possa ser transformado em um memorial²,³,4,5. Só que a partir daí, a maioria dos provedores das redes sociais desativa o acesso e ele não pode ser administrado, já que as políticas de uso da rede impedem que seja dado acesso a outra pessoa. Então, não faça isso se você não quiser perder a administração.
Mas a questão é: se o proprietário do perfil falecer, ele deve ser encerrado? Não necessariamente, então vamos levar em conta que existem perfis que não são de uma pessoa específica, mas de assuntos, e outros que são.
Qualquer perfil pode ser mantido, desde que o “proprietário” falecido tenha deixado instruções sobre sua administração, como, por exemplo, que os herdeiros devem continuar com as mesmas filosofias e ideais que ele tinha com aquele perfil e postagens, que devem manter o sigilo das comunicações que o falecido teve com terceiros. Se essas instruções forem seguidas, e se não houver desrespeito aos termos de uso e serviço das redes sociais, não vejo por que ter que encerrar.
Se não precisa encerrar, aí devem ser tomadas as medidas para que os herdeiros possam se utilizar do perfil e evitar que se matem por causa do dinheiro que pode vir do perfil. Bom, irmão mata irmão por causa de dinheiro e isso todo mundo sabe, mas com um testamento, as chances de isso acontecer são menores, pois é através desse documento que qualquer pessoa diz como devem ser repartidos os bens e para quem, além de deixar instruções sobre o que fazer com esses bens.
O testamento está previsto no artigo 1.857 do Código Civil6, e qualquer bem ou qualquer direito podem ser deixados para quem o(a) influenciador(a) quiser, mas respeitando sempre o direito dos chamados herdeiros necessários que são, se eles existirem, nesta ordem: filhos, netos, bisnetos, pais, avós, bisavós, e lá no fim esposa e marido. Para esses herdeiros, a lei já obriga que 50% dos bens sejam destinados a eles, segundo o artigo 1.8467. Nesta ordem, os primeiros, se existirem, herdam tudo e os outros, nada, se não houver testamento.
Primo, irmão, sobrinho, não são herdeiros necessários. Eles podem receber uma parte da herança se não existirem os outros herdeiros mencionados acima, ou podem receber uma parte da herança se o testador (quem faz o testamento), deixar alguma coisa para eles em testamento escrito, mesmo que sejam em um pedaço de papel de saco de pão. Agora, cachorro, papagaio, chinchila, furão, nem em sonho podem ser herdeiros de ninguém. Isso não existe no Brasil.
A razão de se fazer um testamento é porque não há como dividir um perfil de nenhuma rede social em partes. O perfil é indivisível e não pode ser substituído por outro, e no testamento, seriam esclarecidos, por exemplo, quem seria o administrador, qual a senha dos perfis, o que pode ser postado, por quanto tempo o perfil ainda poderia ficar ativo, enfim, tudo o que o seu “proprietário” quisesse que fosse feito depois da sua morte, e desde que não contrariasse a lei.
Mas uma das razões principais, é que como o perfil não pode ser dividido, o que pode ser repartido entre os herdeiros são os frutos (aquilo que se ganha), que pode ser de publicidade, patrocínio, e muitas outras formas de continuar com ele ativo.
Agora, se o influenciador não deixar nenhuma explicação sobre o que fazer com o perfil, e os herdeiro começarem a brigar, não há dúvidas de que o perfil vai ser extinto porque um vai querer se vingar do outro, e nesses casos, a maioria fica cega e faz de tudo para prejudicar o outro. É sempre assim quando há briga de família em relação à herança, e aí, a melhor opção é ceder (vender) logo esse perfil para outra pessoa.
Porém, se estivermos tratando de um perfil pessoal de uma celebridade, por exemplo, esse perfil não poderá ser cedido para ninguém, pois tem caráter personalíssimo8 e só poderá ser mantido pelos herdeiros para promover a memória de quem era o seu “proprietário”, mas isso não impede, é claro, que ainda sejam feitas campanhas publicitárias, com a postagem de conteúdo antigo.
Se o perfil pudesse ser vendido, aí teríamos o problema da venda de seguidores e não de perfil propriamente dito, o que não é o espírito das redes sociais. Fazer um testamento também é situação obrigatória para quem tem dinheiro investido em criptomoedas e em jogos virtuais. Você não precisa dar a senha de acesso das suas carteiras, mas se falecer, como é que os seus herdeiros vão acessá-la para pegar o que tem lá? De que adiantou você lutar tanto para construir esse patrimônio? Lembre-se do caso do Mircea Popescu.
Nesse caso, através do testamento, podem ser tomadas algumas medidas para proteger todas as informações que o testador quiser, para que ninguém tenha acesso à sua carteira virtual, mas aí depende de cada caso específico e das vontades de cada um.
Os perfis dos gamers seguem a mesma lógica, mas aqui, como aqueles que foram criados sem que se refiram a uma pessoa específica, estes e os avatares podem ser cedidos para terceiros, já que não são personalíssimos, e com esse perfil, tudo o que ele tiver, ou os equipamentos podem ser doados ou vendidos para outras pessoas se assim os herdeiros quiserem.
Como eu já passei dos 40, joguei Second Life (ainda existe e tem muita gente jogando), e não foram poucos os casos em que alguns avatares foram vendidos por mais de 1 milhão de dólares. Se você não sabe que jogo é esse, clique aqui para assistir a matéria, mas existem muitos outros onde você pode vender o seu “personagem”.
Mas, igual aos outros casos, se você não deixar instruções sobre como acessar esse perfil e der instruções específicas de como você gostaria que esse perfil fosse mantido, ou o que fazer com todos os equipamentos que você adquiriu dentro dos jogos, as empresas que mantêm esses jogos on line podem simplesmente extinguir o seu perfil e tudo será perdido.
Tome cuidado para não fazer as coisas erradas, porque não é tão simples assim fazer um testamento, e se fizer errado não terá validade nenhuma, então, consulte antes um advogado que sabia fazer esse tipo de trabalho e lembre-se: o barato sai caro.
***
Rofis Elias Filho, colunista do TecMundo, é geek e advogado, apaixonado por tecnologia desde pequeno. Foi o primeiro da rua a ter internet em casa, em 1994, e se especializou em Direito de Informática no Brasil e em Portugal. Hoje, é professor da mesma matéria em diversas instituições, tendo sido coordenador-executivo da Pós-Graduação da ESA/SP. É sócio do escritório Elias Filho Advogados, que advoga para diversas empresas de tecnologia no Brasil e no exterior. Me siga nas redes sociais para mais dicas, @eliasfilhoadv.
1 - Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais:
I - as energias que tenham valor econômico;
II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;
2 - Facebook;
3 - Instagram;
4 - Twitter;
5 - Google;
6 - Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte;
7 - Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
8 - Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária;
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