O que sabemos e não sabemos sobre o Monkeypox, a varíola de macaco
Tecmundo
A primeira identificação da varíola de macaco ocorreu em 1958, em macacos oriundos de Singapura. Mas essa é uma denominação injusta, já que o macaco não é o reservatório natural do vírus, o qual afeta primariamente roedores, apesar de poderem infectar de forma acidental outros animais, como esquilos, ratos, camundongos, cães e primatas, incluindo os humanos e os próprios macacos.
O primeiro caso humano data de 1970, em uma criança da República Democrática do Congo, que tinha suspeita clínica inicial de varíola humana. A propósito, como o próprio nome sugere, o vírus da varíola humana e o da de macaco são parentes próximos, pertencentes ao gênero orthopoxvírus, da família poxvíridae. Esta é uma família de vírus bastante versátil, com diferentes espécies adaptadas aos mais diversos animais, como caprinos, bovinos, roedores, pinípedes (focas) e até insetos.
As espécies adaptadas especificamente aos humanos são a varíola humana (smallpox) e molluscipox, agente de uma doença comum na infância chamada "molusco contagioso". A varíola humana, que já foi a principal causa de óbito em crianças no mundo, tem cerca de 30% de letalidade e foi a primeira doença erradicada por ação humana em 1980, graças à vacina.
A história dos vírus da família poxviridae está junto à da humanidade. Acredita-se que o vírus foi a causa de uma epidemia na Grécia na era pré-cristã que dizimou um terço da população, sendo uma das causas da queda do império romano e do fim dos Aztecas e Incas após a chegada dos europeus.
Porém, foi a partir do vírus que foi criada a primeira vacina, quando Edward Jenner, em 1796, demonstrou a eficácia da prevenção da varíola humana por meio da indução da infecção pelo vírus cowpox. A vacina atual, utilizada para a erradicação da doença, é derivada do vírus vaccinia, também da família poxviridae.
Dr. Jenner aplicando a vacina em James Phipps, um menino de 8 anos, em 14 de maio de 1796.
Voltando para a varíola de macaco, após os primeiros casos em humanos na década de 1970, tornou-se endêmica em algumas regiões da África, por meio da circulação de duas diferentes clades, uma na região central e outra no oeste.
Eventualmente, ocorrem surtos em países extra-africanos. Em 2003, ocorreram 53 casos humanos nos Estados Unidos (EUA), todos com algum vínculo epidemiológico com roedores ou cães infectados trazidos de Gana. De 2018 para cá, ocorreram casos importados da Nigéria, de Israel, dos EUA e do Reino Unido. Em nenhum desses surtos, houve confirmação de transmissão inter humana e, mesmo que tenha ocorrido, não foi eficiente o suficiente para gerar grandes surtos.
A principal via de transmissão é o contato próximo e longo com lesões de pele geradas pela doença, porém não se afasta a possibilidade de transmissão aérea em casos graves e imunossuprimidos.
Por que a situação atual é diferente?
Há atualmente uma epidemia com características diferentes. Em maio de 2022, foram confirmados casos no Reino Unido em pessoas que não tinham vínculo epidemiológico com as áreas endêmicas na África ou a animais potencialmente infectados, ou seja, há forte suspeita de que esteja ocorrendo transmissão inter-humana.
Até o dia 7 de junho de 2022, foram documentados 1184 casos em 32 países de todos os continentes. O 1º caso no Brasil, importado da Espanha, foi confirmado em 8 de junho de 2022. Esse padrão de evolução dos casos é bastante condizente com uma transmissão inter-humana eficiente e disseminada. Grande parte dos casos são em homens adultos, sem comorbidades, sendo que uma fração significativa com relato de relação sexual recente com outros homens.
Esse padrão não sugere necessariamente que o vírus seja transmitido por via sexual, mas o contato gerado durante a relação aumenta a chance de transmissão por contato. Até o momento, não há confirmação de transmissão pré-sintomática, antes do surgimento das lesões. Caso a transmissão realmente ocorra somente após o surgimento dos sintomas, haverá maior facilidade de controlar a disseminação da doença.
O surto já era previsto, só não sabíamos exatamente quando
Apesar de a situação epidemiológica ser uma novidade, não podemos dizer que não era prevista. O número de casos identificados nas áreas endêmicas da África Central e Ocidental demonstra claramente elevação muito significativa ao longo dos últimos anos e décadas.
Curva de casos notificados em série de longo e médio prazos.
Considerando que esse aumento seja real, isto é, não gerado por diferença significativa na sensibilidade do método de identificação e consequentemente alteração na proporção das subnotificações, há sinais de que existem fatores locais que geram aumento na capacidade de transmissão desse agente. Dentre os fatores envolvidos na transmissão da varíola de macaco, há um que explica o panorama atual, cuja compreensão era suficiente para prevê-lo: a imunidade.
A estratégia de erradicação da varíola humana se deu basicamente por meio da vacinação em massa. Considerando que a vacina tem eficácia de 85% na prevenção da varíola de macaco, ocorreu também uma queda muito significativa desses casos. Porém, a doença não foi erradicada como a varíola humana e passou a ter comportamento endêmico em algumas, poucas, regiões.
A questão é que a imunidade populacional indiretamente gerada pela vacinação da varíola humana não é algo perene. Com o falecimento de indivíduos imunes e nascimentos de susceptíveis, a imunidade coletiva vai gradativamente caindo. Lembrando que a vacinação para varíola humana foi suspensa em 1980, ou seja, praticamente todo indivíduo abaixo de 40 anos não tem imunidade contra a varíola humana e, consequentemente, a de macaco.
Outro fator que intensifica a queda da imunidade coletiva é a possível redução da imunidade ao longo do tempo. Apesar de a vacina para varíola humana teoricamente conferir proteção a longo prazo, nunca foi avaliada a tão longo prazo quanto 40 anos ou 50 anos. E, mesmo que a imunidade seja mantida, isso se aplica à varíola de macaco? Não se sabe ainda.
A África é a região que tem a maior proporção de jovens compondo a pirâmide etária. A população abaixo de 40 anos, que não recebeu imunização para varíola humana, corresponde a 80% da população da República Democrática do Congo.
Em contraste, no Reino Unido, essa fatia representa 40% da população. Já era esperado que a varíola de macaco causasse problemas na África antes que no resto do mundo. Também é esperado que, com o aumento progressivo da fatia populacional suscetível no mundo, a doença se torne endêmica em regiões extra-africanas.
A transmissão inter-humana passou a ser eficaz?
Talvez sempre tenha sido. A questão é que o vírus nunca foi testado em um contexto de baixa imunidade coletiva, exceto na África. É claro que não é esperado da eficácia de transmissão que ela seja como a da varíola humana ou do SARS-CoV-2. A via predominante de transmissão é por contato, e não aérea. É possível que uma ou mais mutações virais tenham causado uma adaptação para aumento na capacidade de transmissão, mas essa não é necessariamente a causa da epidemia atual.
Em um contexto de população totalmente vulnerável, estima-se que um indivíduo com a doença transmite-a para pouco mais de 2 outros indivíduos. Dessa forma, se de 30% a 60% da população tiverem imunidade (ou 40% a 70% forem suscetíveis), isso é suficiente para inibir a circulação do vírus. Lembrando que a maior parte dos países africanos têm mais de 80% da população abaixo de 40 anos não imunes, enquanto que, no Brasil, são 60% e, Reino Unido, 40%.
A entrada do vírus em um local com mais de 40% de pessoas suscetíveis faz que a transmissão passe a ser mais efetiva. Isso significa que cada país ptem uma situação de vulnerabilidade diferente quanto ao risco e à intensidade de uma epidemia, com a África em situação mais frágil, depois o Brasil e o Reino Unido nesses exemplos citados.
O que esperar do futuro?
A má notícia é que a tendência é de aumento progressivo no número de casos no mundo. A mesma dinâmica que ocorre na África Central e na Oriental há décadas tende a se replicar em outros países. A boa notícia é que esse padrão ocorrerá lentamente, talvez em décadas.
O fato de vários países estarem enfrentando surtos agora não significa que a doença se tornará endêmica imediatamente. O provável é que isso ocorra nos países mais jovens antes, primeiro na África e nas demais regiões de baixo Produto Interno Bruto (PIB) per capita.
Países com médio PIB per capita tendem a sofrer na sequência, com o restante dos países de alto PIB per capita sendo os últimos. Porém, essa é a sequência esperada para a endemicidade, mas até a doença se tornar globalmente endêmica, surtos recorrentes ocorrerão em todos os locais, com maior frequência nos países que recebem indivíduos das áreas endêmicas. No início, será difícil de diferenciar essas duas situações, mas um fator pode mudar esse panorama: a vacinação.
Atualmente já existem vacinas mais modernas, com poucos efeitos colaterais e eficácia contra a varíola de macaco. Inicialmente essa estratégia deve ser usada no que se chama de vacinação em anel. A partir da identificação de um caso, vacina-se todos os contatos dos últimos dias. É improvável que seja optado pela vacinação em massa, como no caso da covi-19, por exemplo, a não ser que a doença tenha uma letalidade mais elevada do que a que vem apresentando. Até o momento não houve nenhum óbito.
Esse fato demonstra ainda a heterogeneidade da estrutura de saúde global, já que a letalidade do vírus é de 1% a 30% na África Central e na Ocidental (a depender da cepa). Ficará cada vez mais evidente que a inércia frente à situação de países de baixo PIB per capita nas últimas décadas afetou diretamente a segurança sanitária da população global, e que uma estrutura de vigilância e de serviços em saúde integrada é necessária para a proteção de todos.
Um último aspecto que merece menção é o risco de estigmatização da doença. A doença é transmitida por meio do contato próximo e prolongado. A relação sexual possibilita esse tipo de contato, apesar de não ser obviamente o único. A prática de relação sexual, tanto vaginal quanto anal, tende a ser um fator de risco para a transmissão. Se alguma dessas vias representa maior ou menor risco, não está claro. Essas características epidemiológicas são semelhantes às infecções sexualmente transmissíveis.
A história do vírus da imunodeficiência humana (HIV), por exemplo, mostra-nos o impacto negativo que a estigmatização causa em relação ao enfrentamento de uma doença. No caso da varíola de macaco, poderia contribuir para o atraso no diagnóstico e no fortalecimento de movimentos antivacinação. O estigma pode acelerar o processo de “endemização” da doença.
O risco de um é risco para todos
A varíola de macaco circula há décadas na África, sem um plano efetivo de contenção. O fato de a letalidade do vírus ser de 1% a 30% na África Central e na Ocidental (dependendo da cepa), aparentemente bem maior que o atual surto na Europa, expõe a heterogeneidade da estrutura de saúde global.
Fica cada vez mais evidente que um sistema de saúde não integrado afetou diretamente a segurança sanitária da população global, e que uma estrutura de vigilância e de serviços em Saúde mais articulada é necessária para a proteção de todos.