Agatha Christie odiava detetive Poirot, mesmo assim, guardou sua morte por 30 anos
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Mesquinho e meio egoísta, o detetive belga bigodudo Hercule Poirot é o personagem de Agatha Christie que mais apareceu em obras da escritora britânica: ao todo, ele está presente em 40 livros.
Apesar de seu sucesso, Agatha Christie, um dos maiores nomes da literatura inglesa e uma das principais best-sellers da atualidade — mesmo após quase cinco décadas de sua morte —, vivia uma relação de amor e ódio com o excêntrico investigador.
A dualidade de sentimentos que Poirot causava na britânica era tamanha que pode ser bem expressa em um simples fato: Christie escreveu o livro sobre a morte do personagem durante meados da Segunda Guerra Mundial, mas a obra só foi lançada em 1975. O motivo?
Agatha sem graça?
Nascida em 15 de setembro de 1890, no Reino Unido, Agatha Mary Clarissa Christie teve uma adolescência de privilégios. Segundo relata Janet Morgan em 'Agatha Christie: Uma biografia', a escritora foi educada de forma pouco convencional para os padrões atuais: fora da escola.
Agatha Christie em sua juventude, durante a década de 1910/ Crédito: Domínio Público
Recebendo a visita de tutores, Agatha teve uma educação livre das convenções sociais, tanto é que recusou o primeiro pedido de casamento que recebeu. O gesto era visto como incomum para sua época.
Apesar de uma mulher a frente de seu tempo, Agatha Christie ficou marcada por sua fama de tímida e de ser uma pessoa reclusa. Isso, porém, "permitiu que levasse uma vida contente e mais produtiva", aponta Morgan à Folha de São Paulo.
Mas isso não diminuiu algumas curiosidades sobre a vida da inglesa. Entre as décadas de 1930 e 1940, por exemplo, acompanhou seu segundo marido, Max, em sítios arqueológicos pela África e no Oriente. A experiência influenciou duas de suas grandes obras: "Assassinato no Expresso Oriente" e "Morte no Nilo" — recentemente adaptados para o cinema em 2017 e 2022, respectivamente.
Outro ponto curioso é seu misterioso desaparecimento. Em 1926, após descobrir que seu marido Archibald Christie tinha uma amante, Agatha simplesmente deixou sua residência sem informar a ninguém ou escrever sequer uma pista de onde estava; ou explicar o que havia acontecido.
Após uma equipe de buscas mobilizar cerca de 15 mil pessoas pela Inglaterra, Agatha Christie foi encontrada hospedada em um hotel spa no norte do país. Por lá, fez seu check-in com um nome usando o sobrenome da amante do marido em seu cadastro; o que impediu sua fácil identificação.
A escritora também havia perdido a memória por alguns dias e pode até mesmo ter sofrido uma amnésia global transitória, defende a biógrafa. “Tive a sorte de encontrar pessoas que a viram ou a conheceram na época. Gostaria de impedir mais livros e artigos promovendo teorias bobas sobre o que aconteceu com ela em 1926”.
A morte de Poirot
Já dentro de seu universo literário, Agatha Christie criou um dos maiores investigadores da história — talvez só não mais grandioso que o icônico Sherlock Holmes de sir Arthur Conan Doyle.
Ao todo, entre 1920 e 1975, a britânica escreveu 80 livros: 66 romances e 14 coletâneas de crimes misteriosos, aponta a Folha – vendendo mais de 4 bilhões de exemplares. Em metade destas obras, o detetive Hercule Poirot está presente.
A escritora Agatha Christie/ Crédito: Getty Images
Sua última aparição foi lançada em 1975, meses antes do falecimento de Agatha (em 12 de janeiro de 1976), na obra "Cai o Pano — O último caso de Poirot". Entretanto, o destino do personagem já estava traçado desde meados da Segunda Guerra Mundial.
Em 2020, o Channel 5, rede de televisão do Reino Unido, lançou a série de ficção 'Agatha and the Midnight Murders', retratando a vida da autora na Londres dos anos 1940. O terceiro episódio, inclusive, fala sobre a relação de amor e ódio de Agatha com Poirot.
[Agatha Christie] realmente não gostava dele [Poirot]. Ela não gostava especificamente de aspectos de sua personalidade”, explicou o diretor Tom Dalton em entrevista ao RadioTimes.
"Você sabe, havia claramente coisas sobre essa personalidade que ela havia criado que realmente a feriam. Ele era mesquinho e meio egoísta — essas coisas que fazem de Poirot o grande personagem que ele é. Porque é isso: o que o torna tão bom caráter são, ao mesmo tempo, as coisas que ela realmente não gostava nele", aponta.
Entretanto, Dalton destaca um ponto desse fato. "É um relacionamento fascinante no sentido de que ela estava escrevendo para alguém de quem não gostava ativamente e que ainda assim era capaz de fazer isso de uma forma que cativava o público. Acho que é porque esse processo foi absolutamente parte de fazer Poirot quem ele era", explica.
Embora a morte do detetive belga bigodudo Hercule Poirot só tenha sido publicado em 1975, Agatha Christie já tinha traçado seu destino em meados da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940. Portanto, a obra ficou guardada a sete chaves durante cerca de três décadas.
Agatha ficou refém de Poirot e passou a odiá-lo”, corrobora Janet Morgan.
Mas o que levou a britânica a segurar por tanto tempo a morte de seu personagem? "Numa carta que ela escreve a si mesma, que reproduzo no meu livro, ela desejava matá-lo, mas não podia "porque ele é minha principal fonte de renda'", explica a biógrafa. "Então ela escreveu nos anos 1940 'Cai o Pano', em que Poirot morre, para ser publicado só após a morte dela".
Em 2019, a Publisher Weekly publicou uma lista dos escritores mais vendidos da última década nos Estados Unidos. Christie ocupava a oitava posição, firmando ainda mais seu prestígio e talento mesmo após décadas de sua morte.
Segundo a Folha, um levantamento no mesmo ano apontou que a empresa criada por sua família arrecadava, a cada 12 meses, o equivalente a 12 milhões de reais apenas em direitos autorais.
As obras de Agatha Christie já foram adaptadas para mais de 160 produções, ajudando a manter a popularidade tanto da britânica quanto de Poirot em alta até os dias atuais — mesmo que, ao longo da jornada, o detetive bigodudo tenha se tornado o antagonista da vida da escritora.