As representações de Cristo e as limitações da arte
Aventuras Na História
A Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, em Santo André, no ABC paulista, foi construída no início dos anos de 1980 com uma arquitetura simples e arrojada, o ângulo formado pelas paredes da frente e da lateral da nave subindo em curva rumo aos céus, base para um cruzeiro que identifica o templo católico. O altar-mor deveria ser ocupado por uma escultura contemporânea, uma abstração do Cristo Crucificado. O vigário, um padre italiano, bateu o pé e trocou a imagem moderna por outra, “tradicional” nos moldes do Barroco: “Despertam-nos a devoção e a piedade”, dizia.
A arte é simulacro
Ao longo da história, as representações de Cristo obedeceram a funções básicas antes de tornarem-se obras de arte, como muitas são atualmente entendidas. Pinturas e esculturas foram criadas, primeiro, para identificar cristãos ou facilitar o conhecimento e, segundo, para sensibilizar e catequizar pela emoção. Todavia, muito antes do surgimento do cristianismo, o filósofo Platão já questionava a arte, sendo esta, mero simulacro da verdade. As representações de Cristo seriam, nesse pensamento, cópia daquilo que o artista não viu, pensa que poderia ser e que, enquanto ideia perfeita, não é.
Ignorando Platão e A República, os artistas seguiram trabalhando, e no primeiro milênio e meio da era cristã, sob a tutela da Igreja, foram se consolidando imagens do Filho de Deus. Por volta de 1200, algumas consideráveis mudanças: tudo indica que os patronos dos artistas de então queriam crer que, como nos ensinou Aristóteles, a arte é mimésis – imitação. Ou seja, aprenderíamos observando e imitando. Sabendo disso ou não, São Francisco de Assis deu uma valiosa contribuição ao “aprendizado pela emoção” ao idealizar artesanalmente o primeiro Presépio de Natal (1223), a representação do nascimento de Cristo. Sabemos como foi tal acontecimento, as personagens presentes. A representação cumprindo a função básica: conhecimento.
Arte e fé: emoção e devoção
Um pouco posterior ao Santo de Assis, o pintor Cimabue (Cenni di Peppo) se notabilizou por criar imagens naturalistas, onde aparece o uso da perspectiva e da representação das emoções. O Crucifixo de Cimabue, criado por volta de 1270, ainda hoje é objeto de devoção. Abriria caminho para os primeiros artistas do Renascimento e suas obras que marcariam o imaginário cristão.
A Santa Ceia, pintura de Leonardo da Vinci e A Pietá, escultura de Michelangelo, estão entre as obras de maior representatividade não só do Renascimento, mas da fé católica, reproduzidas aos milhares pelo mundo todo. Ao fiel movido pela emoção escapa o jogo de proporção usado por Michelangelo para harmonizar o filho no colo da mãe, assim como é ignorado o jogo teatral de Da Vinci ao colocar as personagens da última ceia em inegável composição teatral. Vence a emoção: a dor materna ao segurar o corpo do filho descido da cruz em A Pietá e o momento crucial em A Santa Ceia, Cristo institui a Eucaristia perante os amigos e ao traidor.
Entre o final do Renascimento e início do Barroco surgiu, em 1565, uma das mais fortes imagens da Crucificação de Cristo. Seu autor foi Tintoretto. Uma imensa tela com 5,18 x 12,24m expõe com apurado realismo uma interpretação do como teria sido o momento da morte de Cristo. Está na Escola de São Roque (Scuola Grande di San Rocco), em Veneza, um local fundamental para quem deseja conhecer a arte de um dos maiores pintores do período.
Tido como expoente do Maneirismo, que ocorreu entre 1520 e 1600, portanto nem Renascentista, nem Barroco, Tintoretto colocou Cristo no centro da tela, já crucificado em meio a intenso movimento ao redor. Vê-se que a cruz com o ladrão que ficará à direita está sendo erguida enquanto, no outro lado, ocorre a crucificação da terceira personagem que formará o conhecido trio morto no Gólgota. O realismo segue no entorno, cheio de gente em movimento. Soldados cumprindo sua missão, gente sofrendo com a violência cruel, outros tantos apenas observando sem que a tensão deixe de se manifestar.
Tintoretto nasceu Jacopo Robusti, em 1518, na cidade de Veneza. Filho de um tintureiro (tintore), o filho passou a ser chamado a partir da função do pai. Determinado e talentoso, buscou caminho próprio e aos 30 anos tornou-se famoso com a obra “São Marcos salvando um escravo”. Ali já estavam presentes a técnica, as pinceladas fortes, as cores intensas que estariam em obras na Sala do Colégio, no Palácio dos Doges. No local onde eram tomadas grandes decisões dos governantes estão pinturas com temas mitológicos que, somadas às pinturas religiosas, como as da Escola Grande de São Roque, tornaram Tintoretto o maior pintor veneziano de seu tempo.
As irmandades religiosas
Por volta de 1250 surgiram por toda a Itália irmandades destinadas ao culto e à devoção a um santo, além de ajuda mútua. Tal ato dava prestígio para quem tinha dinheiro, mas não era nascido nas cidades. As irmandades tornaram-se populares e ganharam importância por ações assistenciais. A beleza e riqueza de suas sedes davam a dimensão da importância do grupo. Quando a Escola Grande de São Roque terminou de construir sua nova sede, promoveu um concurso para uma pintura do santo padroeiro no teto da sala principal. Os principais pintores da cidade deveriam apresentar seus projetos para a pintura central do teto. O tema seria São Roque, o santo padroeiro.
Tintoretto, contam, obteve as dimensões exatas do local onde deveria ser fixada a pintura. Usando de estratagemas nada honestos, na véspera da apresentação dos resultados conseguiu colocar sua proposta, “a glória de são roque” no exato lugar onde deveria ficar. No dia seguinte, perante os dirigentes da irmandade, anunciou ser sua pintura um presente ao santo. O regulamento não podia impedir o “mimo”, e assim o pintor “ganhou” o concurso. Uma parceria que durou cerca de 25 anos, período em que Tintoretto realizou outras obras de cunho religioso para o local.
A escolha de Tintoretto e desta história para a composição deste texto não é aleatória, mas um exemplo: inerente a história de obras e de artistas estão fatos muito distantes da fé que move artistas e receptores. Com frequência registra a precariedade humana de artistas em buscar incansavelmente se aproximar do Divino, embora praticando atos não tão santos. Também é bom refletir não só sobre criadores, mas também sobre os apreciadores de arte e os fiéis católicos: foi durante um acesso de raiva, vaidade ferida, que Michelangelo colocou seu nome na faixa sobre o corpo de Maria em “A Pietá”. Séculos depois, fiéis e ateus se deliciaram em especular uma possível identidade andrógina em “A Santa Ceia”, tornada especulação ordinária por Dan Brown em “O código da Vinci”. Seria São João ou Maria Madalena, a figura representada à direita de Cristo?
Inúmeras imagens de Cristo foram criadas no universo da arte e do artesanato. Até a indústria cultural nos ligou um Cristo hippie ou super star. Todavia, poucas imagens ganham em devoção de “O Cristo de la Clemencia” ou de seus similares. Criado em 1603 pelo espanhol Juan Martínez Montañés, para a sacristia da Catedral de Sevilha, esse tipo de imagem estabeleceu desde então um padrão presente em inúmeros altares, em procissões e em lares cristãos.
Cristo nos museus
Juan Martínez Montañés é um dos principais escultores em madeira policromada do realismo barroco. O estilo adotado por ele e por outros, como Gregorio Fernández, atendeu de maneira eficaz ao desejo da Contrarreforma religiosa, uma resposta da Igreja Católica ao avanço da Igreja Protestante. Juan influenciou vários artistas e foi retratado por Velázquez, mestre contemporâneo considerado o maior pintor do Barroco Espanhol.
De Cimabue (c. 1270) a Montañés (c. 1603) e chegando aos dias atuais, comprova-se a arte a serviço da conversão. Causam forte impacto, emocionam, mas o cotidiano fora dos templos religiosos comprova a ineficácia de tais imagens na mudança de comportamento. O fiel cristão exercita a piedade com a representação pictórica ou escultórica do Cristo, chega às lágrimas com a encenação da Paixão de Cristo – a peça de teatro mais representada em nosso país – nos átrios das igrejas, ou com as montagens cinematográficas, orienta-se pelo mesmo para trafegar pelas cidades. Fora desses momentos, seguimos impávidos observando e consumindo o noticiário das guerras, das devastações étnicas, dos conflitos sociais e políticos. Nos museus, nas igrejas, sobre os montes, a arte nos encanta e pode até nos comover, todavia continuamos os mesmos.
*Valdo Resende é escritor autor de “O vai e vem da memória”, “dois meninos – limbo” e de “A Sensitiva da Vila Mariana”.