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Caravaggio: a conturbada vida de um gênio e o tribunal da internet
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Caravaggio: a conturbada vida de um gênio e o tribunal da internet

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Aventuras Na História
15/02/2025 20h00
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©Getty Images
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Entre muitos lugares em Roma, a Igreja de Santa Maria del Popolo recebe milhares de visitantes admiradores de Caravaggio. Vão para observar duas pinturas do mestre do Barroco italiano que ornamentam uma capela.

Os padres locais não gostam de turistas, preferem fiéis. Se o visitante apresenta comportamento inadequado aos costumes católicos, é convidado a se retirar do templo. Para não ser incomodado, o melhor é a pessoa fingir que reza, bonitinha, ajoelhada diante das telas na Capela Cerasi.

Caravaggio
"Crucificação de São Pedro", Caravaggio 1600-1601 - Getty Images

Tanto “A Crucificação de São Pedro” quanto a “Conversão de São Paulo” são belas e perturbadoras. Dramáticas, revelam absoluto domínio da luz e sombra de um artista que usa o realismo de maneira inovadora, sobre fundo negro, técnica conhecida como tenebrismo. Criadas a partir de modelos vivos, as telas nos propiciam um resultado simbólico.

Se o padre vier com aquele jeito ameaçador, pois você está demorando demais no simulacro de oração, pergunte-lhe com ar inocente: “É verdade que os modelos usados pelo Caravaggio eram criminosos, ladrões? Parece até que pintou uma santa usando como modelo uma prostituta”. 

Quando o padre é gente boa dirá que nas telas do artista não há santos criados sob imagem ideal. São modelos comuns partindo do que podemos observar nas pessoas ao nosso redor. Seres humanos! Aí está o simbolismo. O pintor usa o humano, expressa o divino e nos faz refletir sobre essa circunstância. O ser na tela poderia ser um de nós, alguém próximo.

Um dos grandes problemas dos contratantes de Caravaggio era reconhecer prostitutas, bêbados, gente do submundo frequentado pelo artista retratada enquanto personagens de suas telas, sejam essas santas ou profanas. O padre dificilmente te dirá que uma forma de conhecer a vida do pintor é estudar os registros policiais de Roma.

Já se você quiser ver o padre de Santa Maria del Popolo ficar tenso é perguntar-lhe sem rodeios: foi esse pintor que assassinou um rapaz? Se paciente, o sacerdote vai discursar sobre ter sido uma briga envolvendo várias pessoas, considerar o fato de que artistas são seres humanos, portanto, passíveis de cometerem erros. Se o religioso estiver impaciente e de saco cheio com suas perguntas, te soltará no mínimo um “andare via” e se mostrará ‘italianamente’ irritado. Você está diante da obra para usufruir esteticamente ou para bisbilhotar e fofocar sobre o artista?

A trajetória do artista

Em se tratando de Caravaggio, conhecendo minimamente sua vida, quando nos deparamos com o seu trabalho torna-se inevitável não refletir sobre alguns fatos. Michelangelo Merisi da Caravaggio, nome advindo da cidade onde nasceu (1571), teve uma vida controversa, apresentando comportamento atípico e vindo até a cometer assassinato (1606, em Roma), o que o fez fugir da cidade para locais que estavam sob outra jurisdição. Ele não se aquietou após o crime.

Há notícias de brigas sérias em Malta (1608) e Nápoles (1609). Tão sérias que ficaram registradas pela história. O artista faleceu aos 38 anos, sem honras e glórias, já que não havia sido perdoado a tempo de voltar para Roma. Por onde passou, conviveu com gente de todo tipo, bebeu para além da conta e transgrediu costumes. Sem perder a busca da técnica perfeita, atingiu os limites do seu tempo, abrindo novos caminhos, tornando-se o primeiro grande artista do Barroco.

Caravaggio
"O Sepultamento de Cristo", Caravaggio, 1603-1604 - Getty Images

Para a Igreja da Contrarreforma, preocupada em marcar posição perante o avanço protestante, contar com alguém como Caravaggio foi fundamental. A capacidade do pintor em expressar o estado emocional de seus personagens levava o espectador a sensações semelhantes, ou pensar que sentia.

Para a religião, a emoção é fator proeminente na relação com o céu ou o inferno. No entanto, uma questão conflitante: o artista que comoveu fiéis profundamente com a tela “A deposição de Cristo” (1602/04) é o homem que cometeu um assassinato.

Tribunal da internet

Temos visto celebridades tornadas “personas non gratas” mesmo após condenadas, terem cumprido pena e pagado pelos seus crimes. Vem o “cancelamento”, uma atitude alardeada em tempos atuais, que implica em exclusão do indivíduo do convívio social. Funciona o velho ditado do “me diz com quem tu andas, que te direi quem és”.

Além da exclusão do indivíduo há também o apagamento, destruição ou refazimento de suas obras. Aqui, tem sido comum o desejo de reescrever livros, “corrigindo” autores. É preciso pensar na diferença entre, por exemplo, a estátua de um bandeirante e a representação de um momento que remete à crença de muitos.

Uma distinção fundamental entre História e Religião. Então, se o objeto é uma tela, ou outra forma de expressão envolvendo a fé e a crença de uma multidão, cabe pensar mais reflexão.

A posse da obra de artistas como Caravaggio é para poucos. Só os poderosos, financeira, política ou religiosamente serão seus proprietários: museus, a igreja católica, os palácios de gente abastada. Aos demais, todos nas camadas inferiores da escala social, restam cópias. Com os avanços tecnológicos temos excelentes cópias, mas só o Senhor Fulano ou a Dona Sicrana é que têm originais.

Quanto mais sacralizado, imantado de lendas e descobertas técnicas, cotidianos dramáticos, mais valor de mercado adquirem a obra e o artista. Certamente você já ouviu a expressão “quanto vale um Picasso”, o que implica não só o objeto, mas quem o fez. Vamos derrubar as paredes das Igrejas, passar tinta ou trocar as telas, enfim, o que será feito caso cheguemos ao ponto de “cancelar” um artista como Caravaggio?

Caravaggio
"Conversão de São Paulo", por Caravaggio, 1600-1601 / Getty Images

Importa a vida do artista? De que maneira impacta o jeito de ser com o que o artista faz? Você, enquanto fruidor de arte, precisa saber da vida de Constable para admirar as paisagens criadas pelo artista? Como você recebe uma tela de Van Gogh com a orelha escondida em curativo tosco? Alguma vez você já se perguntou sobre o que se passava na cabeça de Miró, Kandinsky quando criaram obras tão inquietantes? Qual a relação entre a vida e a obra de Salvador Dali?

Uma resposta que me vem perante essas inquietações é que ao mercado e às classes dominantes o que está em jogo são questões monetárias mais os valores estéticos e históricos da obra de arte.

Há seguros milionários, outro tanto em previsão de ganhos com visitação, empréstimo para exposições, turismo, entre outras possibilidades. O artista é um personagem central desse processo, mas na época, poucos tinham poder sobre suas obras após entrega aos contratantes.

É interessante notar aos juízes de plantão que, se resolverem questionar nosso amigo padre citado acima sobre o fato de ele vigiar a obra de um “assassino”, pode ser que ele responda com a maior convicção (ou cara de pau) do mundo: “Caravaggio foi perdoado pelo Papa!”. O crime já prescreveu, dirá um advogado qualquer.

A questão é que o mundo caminha revendo e buscando soluções para questões que nos inquietam, causam estranhamento e que sejam justas, equilibradas. O que vale para o Chico, vale para o Francisco, diria uma velha conhecida.

Tema sempre delicado, revisões históricas são bem-vindas. Há que se ter cuidado ao queimar telas, reescrever livros, derrubar monumentos, pois esses são documentos, testemunho de um passado que, entre outras posturas, podemos renegar colocando tais objetos em lugar distinto, para serem pesquisados, estudados para que situações erradas não se repitam.

Caravaggio
Visitante admira a obra "Cabeça de Medusa" de Caravaggio, na Gallerie degli Uffizi, em Florença, Itália - Getty Images

Lembrando sempre que será um trabalho imenso, pois, e para voltar ao começo deste texto, na Piazza del Popolo, onde está a igreja com as obras de Caravaggio, no centro da praça está um obelisco egípcio que, em sua origem, foi dedicado a Ramsés II. Está lá, desde 1589. Quando a Itália o devolverá para o Egito? A mesma pergunta vale para todos os que se apossaram de obras de outros países, enchendo os bolsos e levando milhões de turistas para seus museus... Dá para cancelar a Europa?


Valdo Resende é escritor, autor do romance “dois meninos – limbo”, da coletânea “A Sensitiva da Vila Mariana” e de “O vai e vem da memória”, livro de crônicas e poemas. Escreve regularmente no blog Valdo Resende.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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