Violação sexual, difamação e pioneirismo na arte: a intensa história de Artemísia Gentileschi
Aventuras Na História
Esqueça as musas gregas e suas funções inspiradoras. Pense em uma profissional munida de tintas e pinceis capaz de criar uma obra própria e única na história da arte. Alguém tão ousada quanto forte ao enfrentar um universo onde a pintura era atividade praticamente exclusiva de homens: Artemísia Gentileschi foi a primeira mulher a ser aceita na Accademia delle Arti del Disegno, de Florença, em pleno século XVII. Vitoriosa na carreira artística, não titubeou em criar uma alegoria pintando um autorretrato com seus instrumentos de trabalho: a pintura é uma mulher.
Roma era o centro das artes em 1593, ano em que Artemísia nasceu. Na cidade já atuava Caravaggio (Michelangelo Merisi, 1571-1610), que veio a ser o primeiro grande expoente do Barroco legando ao mundo telas de forte realismo e expressividade, acentuado pela técnica chamada tenebrismo, ressaltando personagens sobre um fundo escuro. Querem acreditar os historiadores que Artemísia Gentileschi tenha conhecido o grande pintor, amigo de seu pai, ela mesma vindo a se tornar reconhecida como artista do barroco, seguindo os mesmos princípios estéticos de Caravaggio.
A história nos diz que Caravaggio fugiu de Roma em 1606, após uma briga que resultou em um homem morto. Uma jovem, Artemísia, então com 13 anos, já estava inserida no universo da arte. Filha primogênita do pintor Orazio Gentileschi, teve mais quatro irmãos homens e aos 12 anos perdeu a mãe, Prudentia Montone. Destino óbvio seria a menina cuidar dos irmãos, da casa. Consta que ela o fez e mais, continuou a trabalhar no ateliê paterno, onde os trabalhos seguiam feitos sob a influência de Caravaggio. Orazio veio a ser conhecido como artista caravaggesco. Acreditando no potencial da filha, contratou um professor, Agostino Tassi, para que ela pudesse aprimorar o trabalho.
Um estupro e um casamento
Cuidando dos irmãos e trabalhando no ateliê paterno, Artemísia tornou-se uma mulher forte, fato reconhecido pelos estudiosos de sua vida e pelos apreciadores e analistas da obra que ela deixou. Aos 17 anos, sofreu preconceito público ao ter questionada a autoria da obra “Susana e os anciãos”. Teria sido pintado pelo pai, diziam. Posteriormente teria outros trabalhos questionados pelo fato de ser mulher. Artemísia precisaria ser forte. Todavia, tal força não a livrou de sofrer violência sexual pelo professor Agostino Tassi, com quem o pai dela fez trabalhos em conjunto e sujeito de prestígio na cidade. O estupro na época não era crime, e a “reparação” seria o casamento que não ocorreu e, por isso, Artemísia e o pai denunciaram Agostino.
Não muito diferente de relatos de vítimas de estupro em nossos dias, Artemísia foi desacreditada pelas autoridades que, sem confiarem no relato da jovem, torturaram-na para terem certeza de que ela dizia a verdade. Para a sociedade de então pairava a dúvida se o ato sexual tinha sido consensual ou não e, também fato comum em dias atuais, Artemísia sofreu difamação, sendo tida por muitos como prostituta. O processo durou cerca de sete meses e a condenação de Tassi, aparente vitória da pintora, parece piada: Ele poderia cumprir cinco anos de prisão ou exilar-se perpetuamente de Roma. Nem uma, nem outra, o sujeito permaneceu na cidade, valendo-se do apoio de clientes e admiradores.
Um matrimônio arranjado foi a solução paterna, tentativa de calar a opinião pública. Artemísia casou-se com um pintor de Florença, Pierantonio Stiattesi e, munida de carta aos nobres fiorentinos da família Médici, mudou-se para a cidade. Embora o mercado artístico estivesse centralizado no crescimento de Roma, seus palácios e igrejas, Florença era centro artístico de referência. Aceita pelos nobres locais, Artemísia não só continuou a pintar. Aprendeu a ler, tornou-se amiga de gente como Galileu Galilei e, vitória incontestável de seu talento profissional, tornou-se membro da prestigiada academia fiorentina.
A mulher é a protagonista
Adepta do Barroco à Caravaggio, a pintora Artemísia Gentileschi não se limitou ao claro-escuro e ao realismo, entre as demais características do estilo. Criou composições singulares e personagens expressivas, onde a perspectiva feminina se sobressai brilhantemente. Das 60 obras que atravessaram os séculos e estão em museus pelo mundo, em 40 delas as protagonistas são mulheres. Comum ao período, a pintora criou telas com personagens históricas e bíblicas e, nestas últimas, encontram-se traços da mulher que Artemísia foi.
Judite, a heroína bíblica que assassinou Holofernes, foi pintada mais que uma vez pela artista. A versão que está na Galeria Ufizzi, em Florença, é considerada sua obra-prima por motivos que vão além da qualidade técnica e estética da obra. Artemísia usou sua própria imagem ao pintar Judite, o que levou a análises psicológicas posteriores que encararam o ato como sublimação de vingança contra o homem que a estuprou. O que vemos na imagem é uma personagem determinada e fria ao decapitar o inimigo. Usando planos distintos para a ama e Judite, Artemísia coloca no primeiro plano os braços fortes da mulher decapitando o general inimigo de Israel.
Para o público do período em que Judite Decapitando Holofernes foi criada, é provável que tenha ficado politicamente em evidência mais um tema, entre os vários que na pintura faziam referência aos embates entre cristãos e protestantes. O Barroco é reconhecido artificio da Igreja Católica para combater os avanços dos protestantes “inimigos”, representados no tema pintado por Artemísia pelo próprio Holofernes que deveria morrer para a glória de Deus, diz a passagem bíblica.
Entre a interpretação política e a outra, psicológica, o que é válido ressaltar é a qualidade do trabalho da artista e sua visão peculiar em retratar a mulher. Tal característica está presente nas demais obras que, além de uma perspectiva dos reais sentimentos femininos, há o domínio da anatomia, sendo Artemísia artista destacada ao pintar nus femininos. Conhecendo o próprio corpo e vivendo em um mundo dominado por homens, a pintora foi muito além de um possível ato de vingança colocando em suas obras a capacidade da mulher em fazer o que bem-quiser.
Sucesso e reconhecimento profissional não foram o bastante para livrar Artemísia de problemas. Sustentava com seu trabalho o marido e o filho, ainda enfrentava situações tais como o fato de pedirem a ela um esboço de futuro trabalho, encaminhando este para alguém que cobraria menos. Saiu de Florença passando por outras cidades italianas, incluindo nessas uma volta a Roma, já como artista reconhecida e respeitada. Foi além, pintando na Inglaterra para a corte de Charles I. Residiu em Nápoles, onde faleceu provavelmente em 1654.
O desconhecimento da data exata do falecimento de Artemísia Gentileschi diz bem do que foi a postura da sociedade em relação às mulheres. Nos últimos anos de vida passou por dificuldades financeiras e enfrentou problemas de saúde. Deixou em carta relatos de trapaças sofridas e ressaltou sua luta sendo mulher. Relegada ao esquecimento nos séculos seguintes, foi com o avanço das lutas feministas, a partir dos anos de 1970, que a artista passou a ser vista sob o prisma da revolução feminina. Desde então, crítica e história se voltam para colocar Artemísia Gentileschi em seu devido lugar: o de grande artista do período Barroco; ímpar, entre as pintoras do mundo.
*Valdo Resende é escritor, autor do romance Dois Meninos – Limbo e da coletânea de contos A Sensitiva da Vila Mariana. Seu mais recente lançamento é O Vai e Vem da Memória, uma reunião de crônicas, contos e poesias.