A péssima representação do Brasil em Velozes e Furiosos 10 e outros filmes
Tecmundo
O Brasil é um país recorrente em diversas produções hollywoodianas. Embora poucos filmes estadunidenses sejam completamente ambientados em nossa terra, vez ou outra alguma produção filma cenas aqui.
Velozes e Furiosos 10 é o filme mais recente a fazer isso, com algumas cenas ambientadas no Rio de Janeiro. Porém, como já era de se esperar, o longa comete os mesmos erros ao retratar o Brasil desde quando filmou Operação Rio em 2011. Mais de uma década se passou, mas a mentalidade ultrapassada de parte dos norte-americanos parece ter continuado presa no tempo.
Vale ressaltar que algumas cenas foram realmente filmadas no Brasil com helicópteros e drones, utilizando as praias do Arpoador e de Copacabana como locação. No entanto, o elenco não veio ao país, segundo informações da Folha.
Não é surpresa para ninguém que os Estados Unidos retrata todo o resto do mundo apenas como uma ponta periférica ao seu redor. Afinal de contas, tudo de importante deve acontecer apenas na terra do Tio Sam.
Em 2011, a discussão se Operação Rio fazia uma fiel representação do Brasil gerou um debate interessante entre especialistas e grande parte do público. No fim, devemos ser reduzidos apenas a estereótipos como bundas de fora, samba e armas?
O décimo filme da franquia chefiada por Vin Diesel volta ao Rio para resgatar momentos importantes da saga e dar prosseguimento à história. Porém, a mesma representação de um povo armado e uma terra sem lei impera.
Esse tipo de visão pejorativa em Hollywood é algo comum ainda em 2023 para muitas produções. É normal acompanhar produções como O Resgate, da Netflix, que abusa de um filtro amarelo para dar uma conotação de subdesenvolvimento e inferioridade à Índia. O México é outro país estereotipado há décadas, sempre representando seus homens com a típica camisa branca, corpo tatuado, correntes, e ligação com algum cartel de drogas; além do mesmo filtro.
Para a Europa e até mesmo os vizinhos canadenses, por outro lado, raramente uma visão tão deturpada de um povo é apresentada. Claro, a maioria dos grandes cineastas são ou norte-americanos, ou britânicos, com algum francês pedindo passagem. Embora o cinema esteja recheado de ótimos filmes que retratam as mazelas sociais de países "desenvolvidos", a representação das pessoas como um povo e seu estilo de vida dificilmente muda.
Grande parte das produções que saem dos Estados Unidos mostram os típicos subúrbios cheios de casinhas com gramas verdes e cercas baixas; as cenas clássicas dos personagens tomando um café aguado; até mesmo as dificuldades em pagar a hipoteca da casa, ou a preocupação em levar alguém no médico porque é caro demais. Velozes e Furiosos não representa necessariamente essa estética à risca - até porque 95% dos filmes são ação pura - mas tem a essência.
Para nós, brasileiros, a vida do cidadão médio norte-americano é a descrita no parágrafo acima, assim como o resto do mundo deve ter uma visão parecida. Tudo é uma questão de como o cinema consegue trabalhar o imaginário das pessoas sobre outros povos. Infelizmente, o imaginário do Brasil para o resto do mundo é errado.
O brasileiro é realmente considerado um povo hospitaleiro e feliz, e nisso não há problema algum. Claro, todos temos problemas, mas a receptividade do brazuca é imbatível independente do momento.
Mesmo assim isso não resume nossa vida como uma festa de 24 horas por dia. Nem mesmo que nossas mulheres andam somente com biquínis em qualquer ocasião, ou que todo cidadão tem uma arma. Porém, esse é o imaginário que o exterior tem sobre nós devido a essa exportação cinematográfica equivocada.
Durante a Copa do Mundo de 2014, não era incomum encontrar notícias sobre estrangeiros assediando brasileiras com apalpadas, xingamentos, e beijos forçados. As justificativas sempre tinham relação com o fato das brasileiras serem "fáceis demais", idealizado por um pensamento de que se essas mulheres desfilam com roupas curtas no Carnaval, é porque querem alguma coisa. Curiosamente, esse pensamento é a exata forma como nossa maior manifestação cultural é representada no exterior.
A violência é um assunto igualmente complexo. O Rio de Janeiro é realmente bem perigoso, assim como São Paulo e Bahia também são. Em 2022, o Brasil registrou cerca de 40 mil assassinatos, e isso significa que mais de 110 pessoas foram vítimas de mortes violentas por dia, segundo um levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e o G1.
Assim, não somente Velozes e Furiosos 10, como inúmeros outros filmes retratam o Brasil e o Rio de Janeiro como um lugar em que, categoricamente, todos estarão armados e são perigosos, como se fosse um país sem qualquer tipo de lei. O país realmente tem problemas seríssimos de segurança pública, porém, os Estados Unidos registraram mais de 190 incidentes com armas de fogo em escolas e mais de 300 tiroteios em massa em 2022, de acordo com dados das organizações Everytown for Gun Safety e Gun Violence Archive.
Embora haja uma diferença grande nos números entre países e no perfil dos tiroteios, os norte-americanos podem portar armas livremente em 25 dos 50 estados presentes no país. De acordo com um relatório de 2018 do Small Arms Survey, é estimado que hajam mais de 390 milhões de armas nos Estados Unidos, com uma proporção de 120 armas para cada grupo de 100 habitantes.
Há mais armas que pessoas nos EUA. Mesmo assim, você não vê a população estadunidense tirando armas dos bolsos a qualquer momento para ajudar Toretto nas ruas de Los Angeles, ou em qualquer filme de ação, já que todas as pessoas são o exato arquétipo de cidadão perfeito e exemplar. Aliás, o estado da Califórnia exige uma licença para transportar armas em público - e com esse documento ainda assim seria possível ajudar Dom ao puxar uma arma das calças e apontar para os vilões.
O Brasil sequer tem uma lei que aprova o porte de armas e, mesmo assim, o povo é retratado integramente como um bando de pessoas que tiram um revólver da cueca em qualquer situação. Esse é o imaginário que o cinema estadunidense cria na cabeça dos seus espectadores e nem mesmo é capaz de realizar uma autocrítica.
Cometer um erro em 2011 é uma coisa. Cometer um erro e voltar a repeti-lo em 2023 é falta de empatia e conhecimento sobre um país com quase 220 milhões de habitantes. Velozes e Furiosos 10 e outros filmes de ação que visitem o Brasil não tem a necessidade de tecer uma crítica complexa sobre o país. Não é preciso esperar por coerência narrativa nessas obras fictícias, mas toda ficção usa uma representação da realidade como base para gerar seus eventos. E a realidade brasileira é bem diferente.
Retratar pessoas como pessoas dignas através de pesquisa e consulta séria com brasileiros que trabalhem na indústria cinematográfica certamente não vai doer nos bolsos bilionários da Universal e outros estúdios.