Os sinais silenciosos da violência obstétrica
Anamaria
A violência obstétrica afeta milhares de mulheres, não apenas no Brasil, mas ao redor do mundo. Essa forma de violência acontece durante a gestação, parto ou pós-parto, inclusive no atendimento ao aborto. De natureza física, psicológica ou verbal, ela pode acontecer também na forma de negligência, discriminação, condutas excessivas ou não aconselhadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que desde 1996 traz recomendações sobre o que deve e o que não deve ser feito durante o parto.
Dados preliminares do estudo ‘Nascer no Brasil 2’, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revelaram que adolescentes e mulheres negras com mais de 35 anos e baixa escolaridade têm mais risco de sofrer violência obstetrícia. O estudo acompanhou 24.255 mulheres que ingressaram no Sistema Único de Saúde (SUS) para o parto ou por perda fetal precoce entre outubro de 2020 a novembro de 2023.
AnaMaria conversou com Anna Beatriz Herief, obstetra especialista em parto humanizado, que listou os sinais que caracterizam a violência obstétrica e quais são as ferramentas fundamentais para combater essa prática que deixa marcas profundas em mulheres submetidas a ela. Confira a seguir!
Conheça os sinais da violência obstétrica
A violência obstétrica é uma realidade global, não se restringindo ao Brasil. “As mulheres estão sujeitas a essa forma de violência em todo o processo de gestação, parto e puerpério, inclusive no atendimento ao aborto. Mesmo em países onde as enfermeiras obstetras estão à frente da assistência e o parto domiciliar é mais comum, as gestantes ainda podem sofrer violência obstétrica”, diz Anna Beatriz.
Ela destaca que práticas desnecessárias, como o "push, push, push", em tradução livre “empurre, empurre, empurre”, durante o parto, são comuns em países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e partes da Europa. Essa prática pode trazer riscos tanto para a mãe quanto para o bebê, aumentando, por exemplo, o risco de lacerações.
Em geral, a violência se manifesta silenciosamente. As práticas muitas vezes são prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas recentes e atualizadas. Elas submetem mulheres a protocolos e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e as impedem de exercer o protagonismo durante a gestação, parto ou puerpério.
“Muitas dessas situações são tão comuns que algumas mulheres nem se dão conta da violência que sofreram”, diz Anna.
Confira a seguir alguns exemplos de violência obstétrica:
- Lavagem intestinal, raspagem de pelos e restrição de dieta na hora do parto;
- Ameaças, gritos, piadas ou tapas (sim, tapas);
- Impedir a mulher de se movimentar livremente e obrigá-la a ficar em posição ginecológica;
- Omissão de informações, desconsideração das opiniões, padrões e valores culturais da mulher e parturientes e divulgação pública de informações que possam infantilizá-la ou prejudicá-la;
- Não permitir acompanhante de escolha;
- Não oferecer apoio para alívio da dor;
- Manobra de kristeller — técnica agressiva, que consiste em pressionar a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê;
- Episiotomia — um corte na vulva e na vagina feito com uma tesoura ou bisturi, comumente chamado de ‘pique’ ou ‘episio’;
- Impedir o contato pele a pele da mãe com o bebê e a amamentação na primeira hora de vida (caso nascimento sem intercorrências) ou separá-los por protocolo.
Como exercer o empoderamento no parto?
O primeiro passo para se proteger da violência obstétrica é estar incansavelmente bem informada. Por isso, Beatriz destaca a importância de um pré-natal para prevenir a violência obstétrica e garantir o empoderamento feminino durante o parto. “A questão de equilibrar a necessidade de intervir rapidamente por alguma emergência, seja de demanda materna ou fetal, está no pré-natal. A mulher deve ser muito bem informada a respeito de tudo que possa vir a ser necessário durante o trabalho de parto”, explica.
Segundo Anna Beatriz, quando surge a necessidade de uma intervenção rápida, como indicar uma cesariana ou realizar uma manobra complexa, a comunicação clara e tranquila com a gestante é indispensável. “Ali naquele momento, olhamos nos olhos dela, de maneira firme e segura, sem pressa, explicamos o que será feito e pedimos o consentimento. Esse movimento é geralmente dado rapidamente, pois a mulher já sabe o que pode acontecer”, ressalta a especialista.
Em suma, a única forma de uma mulher escapar da violência obstétrica é estar munida de informações. “Desde que o parto foi medicalizado e centralizado na figura do médico, as mulheres precisam se informar. É injusto, mas hoje as mulheres praticamente precisam se pós-graduar em intervenções no parto, fisiologia do parto, o que pode e o que não pode acontecer”, comenta. Ela acrescenta que, embora algumas mulheres tenham acesso a uma educação perinatal mais robusta, com doulas e enfermeiros obstetras, essa realidade ainda é restrita à elite.
As gestantes devem se informar, mas a educação começa nas universidades
Um dos principais pontos para combater a violência obstétrica, segundo a especialista, é a educação dos profissionais de saúde. “Começa na universidade, com um ensino baseado em evidências robustas e atuais, e não em livros de obstetrícia que, embora ótimos para ensinar anatomia e fisiologia, não acompanham as mudanças constantes da ciência e das práticas médicas”, explica.
É fundamental que os jovens profissionais entendam que o parto, na maioria das vezes, é um processo fisiológico e não depende deles. O profissional deve estar presente no momento do parto como segurança. As parturientes de alto risco podem precisar de intervenções e manobras, mas, conforme a obstetra salienta, são a minoria. A especialista reforça que a educação médica é fator crucial para a mudança dos paradigmas do parto.
“É preciso ensinar, nas universidades, a respeitar decisões, deixar a paciente fazer suas próprias escolhas baseadas em sua própria bagagem. Isso não é ensinado, e isso é a base”.
Além disso, Beatriz destaca a necessidade de descentralizar o parto dos centros hospitalares: “A maioria das mulheres é de risco habitual e não precisa de médico para parir. Grande parte das mulheres pode parir com enfermeiras obstetras e isso é muito mais barato, inclusive, para o sistema de saúde”.
A obstetra ainda complementa que as intervenções cirúrgicas sem necessidade aumentam a probabilidade de complicações durante o parte para o binômio mãe-bebê: “Várias mulheres e bebês vão precisar de UTI por conta de intervenções desnecessárias. É extremamente contraproducente o modelo atual, além de ser violento”.
Um caminho longo com passos curtos
A disseminação de informações relevantes sobre o corpo feminino e a saúde reprodutiva é peça-chave da mudança observada ao longo dos últimos anos. Conteúdos sobre parto humanizado, como os compartilhados por Beatriz em seu perfil do Instagram, são fundamentais no processo de educação de gestantes. “As mulheres agora estão querendo parir. Elas estão sabendo que é possível e estão cobrando isso dos profissionais de saúde”, diz Beatriz.
Como efeito da educação de mulheres sobre parto, profissionais da saúde com linhas de trabalho mais tradicionais sentem a necessidade de se atualizarem para atender a nova demanda de gestantes bem informadas.
“As próprias políticas nas maternidades estão um pouquinho mais de humanizadas, mas o caminho é muito longo e os passos são bem lentos”, destaca a obstetra.
“Tenho observado residente e acadêmicos, principalmente devido às informações pela internet, perceberem que existem outros caminhos. Os novos profissionais estão entendendo que o caminho não é violentar a mulher, intervir sem a real necessidade. O caminho é sentar ao lado e atender e assistir o parto baseado em evidência”, finaliza.