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Peaky Blinders: por que amamos personagens frios como Thomas Shelby?
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Peaky Blinders: por que amamos personagens frios como Thomas Shelby?

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Tecmundo
04/03/2022 20h30
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Qualquer um que se dedique a estudar princípios de roteiro e construção de personagens irá se dar conta de uma coisa: não é fácil construir um protagonista convincente. Quando um roteirista imagina uma pessoa que não existe, ele precisa delinear múltiplas facetas que sejam capazes de torná-lo mais próximo do humano. 

Como se diz no jargão, um bom personagem precisa ser tridimensional. Ou seja, ele precisa ser ambíguo, não ser bom nem ruim, ou então ser bom e ruim ao mesmo tempo. Caso isso não ocorra, será difícil que o espectador se identifique com ele, pois simplesmente não verá uma pessoa ali.

As séries estão lotadas desses grandes personagens demasiadamente humanos. O advento de uma era de ouro das séries, nos últimos quinze anos, tem a ver com vários fatores: tramas mais complexas, criadas por roteiristas mais ousados e capazes de criar personagens desafiadores. E dentre estes tantos personagens que se destacam na produção televisiva, chama a atenção a recorrência de algumas características que, a princípio, talvez pudessem ser compreendidas como avessas ao que os manuais de roteiro costumam recomendar.

Falo aqui sobre a alta quantidade de protagonistas poderosos e frios, que desempenham ações tão calculadas que, por vezes, podem parecer próximos a máquinas. Poderíamos chamar estes personagens de anti-heróis (termo que designa os protagonistas que não possuem as virtudes esperadas aos heróis, pois são essencialmente “falhos”, mas ainda assim cativantes), mas é algo que vai além disso. Falo de sujeitos que parecem construídos sob medida para que nós, os espectadores, não gostemos deles – mas mesmo assim nós gostamos.

Um ícone deste tipo de personagem frio e calculista é Thomas Shelby, o protagonista da série britânica Peaky Blinders, vivido pelo ator Cillian Murphy. A série trata de uma gangue bastante cruel que pratica crimes na Inglaterra em 1919. 

Thomas Shelby, o líder da gangue, é comumente descrito como frio e calculista – o que significa, dentro da série, que ele tem uma forte propensão à violência e não expõe muitos traços de remorso quando a pratica. Seu tratamento com as mulheres é também bastante pragmático: Shelby aproxima-se delas por conta de alguma vantagem que possam oferecer. Definitivamente, não é possível descrevê-lo como um homem sensível.

Por que personagens frios fazem sucesso?

(Fonte: Netflix)(Fonte: Netflix)

Em uma reportagem de outubro de 2021 no portal Tab UOL, a jornalista Marie Declercq traz uma abordagem bastante interessante de como personagens como Thomas Shelby estão se popularizando e sendo apropriados especialmente por um público masculino, que o adota como uma espécie de modelo.

O protagonista de Peaky Blinders é colocado dentro de uma mesma seara com outros personagens – como o Coringa, Don Corleone e James Bond – que simbolizariam uma espécie de modelo de masculinidade a ser espelhada. Não por acaso, sua imagem costuma ser replicada em páginas de conselhos para homens.

A ascensão deste tipo de personagem, com pouquíssimos traços daquilo que se estereotipa como elementos femininos (como, por exemplo, a sensibilidade) pode refletir um esforço por reiterar um espaço para uma performance de masculinidade hoje muito criticada coletivamente, vide a popularização do termo “masculinidade tóxica”.

Na mesma matéria do UOL, a pesquisadora em Comunicação Beatriz Blanco afirma que o sucesso de personagens como gângsters tem a ver com a ideia de um “resgate” de algo que nunca deixou de existir – como se ser homem tivesse deixado de significar, por si mesmo, ter uma fonte de poder dentro do tecido social. Por isso, vale lembrar que Thomas Shelby não é o primeiro personagem de cumpre este tipo de papel, e certamente não será o último.

Uma tradição de personagens frios e calculistas

(Fonte: NBC)(Fonte: NBC)

As séries televisivas estão recheadas de homens (e até mulheres) que, em certa medida, cumprem o requisito do herói com algumas falhas de caráter e com uma noção um tanto distorcida de ética. O culto gerado em torno deles não é exatamente uma novidade, portanto. E é bastante provável que você tenha se apegado a algum deles.

Um personagem marcante na seara mais recente destes anti-heróis é Tony Soprano, o chefe de uma família de mafiosos em New Jersey retratado na já clássica The Sopranos (1999-2007), da HBO. Tony tinha lá suas nuances de afeto, mas que eram acobertadas pelo “código” compartilhado dentro da máfia para a manutenção dos seus negócios – era capaz, por exemplo, de ordenar a morte de parentes caso desconfiasse que eles pudessem estar conversando com a polícia.

O personagem, no entanto, era um homem extremamente perturbado pelo peso trazido pelo seu “trabalho” e sua vida. Numa sacada genial, a série começa quando Tony tem um ataque de pânico em casa e vai parar na terapia – algo inconcebível para um homem que precisa ser a muralha de uma família inteira. O resto das 6 temporadas sempre acaba girando em torno do preço que ele paga por conta desse estilo de vida e de sua postura impassível.

Outro personagem extremamente duro – e enigmático – é o famoso Hannibal Lecter, na interpretação magistral dada ao psicopata pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen na série de terror Hannibal (2013-2015), da NBC. O psiquiatra, tornado cult pela série de filmes que o retratou, é indubitavelmente um sujeito que escapa de todo conceito de humanidade que podemos ter. 

Diferente de Tony Soprano, ele jamais revela qualquer indício de empatia com o próximo, quase como se fosse um robô – mas, curiosamente, seus comentários acerca de seu inimigo, o policial Will Graham, respingam sempre algumas gotas de sabedoria. Por isso mesmo, Hannibal se tornou um dos personagens ficcionais mais marcantes de todos os tempos.

Mais recentemente, podemos listar também um dos bilionários mais odiados e amados do mundo, o Logan Roy de Succession. Ok, em Succession (em exibição desde 2018 pela HBO), nenhum personagem presta, e esta é a grande graça da série. Mas Logan, um dos protagonistas – ao lado de seu filho Kendall Roy – parece ser imune a qualquer sentimento ou cobrança emotiva feita pelos que estão à sua volta. Não por acaso, o bordão do personagem é a frase “fuck off” que repete continuamente.

Ainda que, bem no fundo, Logan pareça amar seus quatro filhos (esta pelo menos é a tese do ator Brian Cox, que o interpreta brilhantemente), isto nunca é de fato assumido por ele, ao menos com clareza. Suas atitudes são quase sempre horrorosas: ele é capaz de mandar o filho para a prisão como um bode expiatório para se livrar ele mesmo da justiça, e consegue fazer com que isso pareça uma declaração de amor.

(Fonte: Showtime)(Fonte: Showtime)

Por fim, uma mulher para esta lista de personagens. A enfermeira Jackie de Nurse Jackie (exibida entre 2009 e 2015 pelo canal Showtime) é uma contradição ambulante. Ela trabalha num hospital público bem capenga e consegue fazer todo tipo de sacrifício para tentar ajudar os mais desfavorecidos. 

Por outro lado, sua vida pessoal é um horror: Jackie (vivida por Edie Falco, que faz a mulher de Tony Soprano em The Sopranos) é bem casada com um homem bom e tem duas filhas lindas, mas mantém um caso com o farmacêutico do hospital para conseguir as drogas em que é viciada. Ao longo de sete temporadas, só assistimos a Jackie ruir a vida de sua família sem nunca conseguir se tornar uma pessoa melhor.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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