100 anos de História: Como nasceu o Partido Comunista Chinês?
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“Não interessa se o gato é branco ou preto. O que importa é que ele mate o rato.” Foi com essa analogia felina que Deng Xiaoping, líder supremo da China entre 1978 e 1992, explicou a abertura do país à economia de mercado, confundindo o mundo todo sobre uma questão que parecia óbvia: os chineses são mesmo comunistas?
Quando ele herdou de Mao Tsé-tung a nação mais populosa do planeta (1,4 bilhão de pessoas hoje), não havia dúvida sobre isso. Também não havia qualquer incerteza de que o país estivesse afogado na mais extrema miséria.
Xiaoping, então, foi pragmático: logo no início de seu governo, o novo homem forte da China anunciou mudanças profundas na política econômica. Flexibilizou a circulação de capital, deu espaço à propriedade privada e estreitou laços com o Ocidente.
Os empreendedores ganharam razoável liberdade para fazer dinheiro — e fizeram tanto que, não à toa, hoje você provavelmente tem algum produto chinês no cômodo em que lê esta revista. O novo modelo foi chamado de “economia de mercado socialista”, mas Xiaoping preferia o termo “socialismo com características chinesas”.
De bobo, o “Arquiteto Chefe”, como ficou conhecido graças às reformas, não tinha nada. Ele sabia muito bem que exaltar o capitalismo no título de seu modelo econômico seria ir contra uma simbologia de importância vital para a China.
Afinal, estamos falando de uma sociedade controlada à mão de ferro, desde 1949, por uma organização que traz o oposto do capitalismo em seu nome: o Partido Comunista Chinês (PCC). Fundador e líder inconteste da República Popular da China, o partido por lá é sinônimo de governo, de poder absoluto e de dogma. Conceitos que só se fortaleceram ao longo de um século de história.
Nova República
O nascimento do Partido Comunista Chinês, em 23 de julho de 1921, tem dois precedentes ligados a revoluções, ambos da década anterior: a Xinhai, também conhecida como a Primeira Revolução Chinesa, e a Russa. A primeira, de 1911, foi a que derrubou a dinastia Qing, dando um fim a 2 mil anos de regime imperial.
Os chineses não aguentavam mais a corrupção do governo e estavam inconformados com a falta de capacidade do império para conter as intervenções de potências estrangeiras no país. Para se ter uma ideia, os chineses eram proibidos de julgar crimes cometidos por estrangeiros — e isso em seu próprio território.
A queda dos imperadores, diante desse estado de coisas, parecia mesmo só questão de tempo. Tanto que, já em 1853, ninguém menos que Karl Marx escreveu assim para o New York Daily Tribune: “A dissolução da velha China é tão certa como a de uma múmia cuidadosamente conservada num sarcófago hermeticamente fechado e que se expõe ao ar”. Além disso, havia uma questão étnica prestes a explodir: a maioria Han (ainda hoje o principal grupo étnico da China, representando 92% da população) não queria mais saber de ser liderada pelos Manchus, os fundadores da dinastia Qing.
Esse coquetel de insatisfações levou a uma revolta generalizada e à tomada de poder por forças contrárias ao império. O dia 1º de janeiro de 1912 ficou marcado como o início de uma era republicana no país — e também pelo novo calendário ocidental adotado pela nação, aposentando o sistema “lunar”, com suas semanas de dez dias. Essa primeira república, no entanto, ainda não era comunista.
Até porque pouca gente sabia na China, e no resto do mundo, que raios era comunismo. E isso nos leva à segunda revolução dessa história. Seis anos após os chineses, foram os russos que se levantaram contra seus monarcas — no caso, o governo absolutista do tsar Nicolau II. Em novembro de 1917, instalou-se no poder um governo socialista soviético, inspirado pelas ideias marxistas do revolucionário Vladimir Lenin.
Seu partido, o Bolchevique, mudou seu nome no ano seguinte para Partido Comunista, que dominaria o que passou a se chamar, em 1922, de União Soviética — o primeiro país socialista da Terra. Essa novidade, de uma revolução resultando num governo onde o capitalismo não seria a força dominante, teve repercussão no mundo inteiro.
Inclusive no Brasil: é também de 1922 a criação do Partido Comunista Brasileiro. “Os chineses olharam para o exemplo dos soviéticos e concluíram que era bem-sucedido”, explica Tony Saich, professor de Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School. “Eles haviam rompido com um sistema imperial e com forças coloniais, e conseguiram fazer a economia ir para a frente. Então [o socialismo] parecia uma alternativa atraente.”
O Partido Comunista Chinês nasceu inspirado pelos ventos que vinham da Rússia e foi liderado, desde o início, por um ex-líder estudantil apaixonado pelo marxismo-leninismo: Mao Tsétung. Mas não foi Mao nem seu partido que ficaram com o poder quando os imperadores caíram. Foi o Koomintang, uma organização nacionalista liderada por grandes fazendeiros.
Quando os comunistas entraram numa disputa de poder com esse grupo, deu-se uma guerra interna que, em muitos aspectos, foi como se os políticos ligados no Brasil ao agronegócio defendessem seus interesses contra “a esquerda” da época.
Acuados por 700 mil nacionalistas, os comunistas fizeram uma retirada estratégica, afastando-se para reunir forças e esperar o momento certo de ir para a luta. Essa saída de campo tornou-se um evento-chave da mitologia a respeito da ascensão do Partido Comunista na China. Tanto que ficou conhecida — e não há nenhuma megalomania aí — como “A Longa Marcha”.
Saída pela esquerda
De início, as forças em retirada juntaram 86 mil soldados e 15 mil civis. Esses homens em marcha (e digo homens porque só havia 32 mulheres nesse grupo todo) levavam suas armas e suprimentos nas costas, a pé ou em cima de cavalos.
Como na China tudo é superlativo, os comunistas em fuga formavam uma linha humana que se estendia por 80 quilômetros. Eles davam preferência por marchar à noite, quando o inimigo estivesse dormindo, criando um espetáculo visual de tochas acesas por entre as montanhas. O destino: a Manchúria, aos pés da Grande Muralha.
Era ali que montariam seu quartel-general até que o momento propício lhes permitisse partir para o litoral e se apossar das maiores cidades. Ao todo, essa árdua caminhada durou um ano certinho, de outubro de 1934 ao mesmo mês de 1935, e custaria dezenas de milhares de vidas. Ao longo do trajeto, não foram poucas as ocasiões em que os comunistas, liderados por Mao Tsé-tung, tiveram conflitos armados contra tropas nacionalistas. Isso sem falar na fome e na exaustão.
Dos mais de 100 mil que iniciaram a jornada, só 4 mil a concluíram. E o tal momento propício para tomar o poder veio aos poucos — e por linhas tortas. Em 1939, começava a Segunda Guerra Mundial, quando finalmente nacionalistas e comunistas arranjaram outro inimigo em comum: o Japão, que havia tomado posse de terras chinesas.
Houve então uma bandeira branca entre os conterrâneos para combater os invasores, mas, na prática, os nacionalistas faziam jogo duplo — chegaram a estabelecer acordos secretos com os japoneses para minar seus rivais locais. Só que o tiro saiu pela culatra. Os comunistas ganharam identificação como a grande resistência nacional, e as tropas revolucionárias de Mao foram se fortalecendo mais e mais.
Quando o conflito internacional acabou, com o Japão arrasado pelo Exército americano, o foco dos chineses pôde se voltar novamente para a guerra civil. Mas aí o cenário já era outro. Os comunistas venceram e, no dia 1º de outubro de 1949, nascia a República Popular da China. A partir daí, a nação seria unificada, o Partido Comunista Chinês se consolidaria no poder de vez e, à sua frente, o “Grande Timoneiro” Mao Tsétung viraria mais que um líder supremo: seria um tipo de deus num país avesso à religião.