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Das fogueiras paleolíticas aos incêndios florestais: Fogo, uma saga ancestral
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Das fogueiras paleolíticas aos incêndios florestais: Fogo, uma saga ancestral

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Aventuras Na História
22/08/2021 12h00
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Tente vestir a pele dos humanos do Paleolítico, há cerca de 2 milhões de anos. Movidos pelo ímpeto de sobrevivência diante das forças da natureza, nossos ancestrais buscavam aprimorar seu modo de vida com experimentação e engenho. Até que, um dia, o fogo, antes visto somente nos raios do céu explodindo na terra e causando incêndios naturais, fonte de fascínio e temor, passou a arder por obra de suas mãos.

Agora, interrompa a cena e salte para o ano de 2020. Nas telas o que se vê com olhos molhados é o fogo a devorar o nosso Pantanal, acinzentando o que deveria ser verde, vivo, morada de tantas espécies. Este é só um exemplo pinçado de uma realidade brutal.

Cientistas da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, e do Sistema Copernicus, da União Europeia, revelaram que os incêndios em Nova Gales do Sul, Austrália, no Ártico Siberiano, na costa oeste dos Estados Unidos e no Pantanal brasileiro foram os maiores de todos os tempos, com base nos 18 anos de dados sobre incêndios florestais globais compilados pelas organizações.

Mas como um elemento tão crucial para o avanço da humanidade passou a ser instrumento de devastação e, consequentemente, ameaça ao equilíbrio dos ecossistemas terrestres? A viagem é longa — e precisa ser reconstituída a fim de se evitar futuras catástrofes. Então, voltemos ao tempo em que o ser humano batia uma pedra na outra para produzir pontas afiadas que facilitariam o corte de carnes e peles de animais.

Pois entre 1,8 milhão e 300 mil anos atrás, o Homo erectus, dotado de raciocínio lógico, descobriu que, se esfregasse bem duas superfícies rochosas, as pederneiras, obteria uma faísca. Esta, por sua vez, incendiaria materiais de fácil combustão, tais como pedaços de madeira e palha. Ali irrompia uma revolução que se desdobra até hoje. Afinal, o fogo ainda é a principal fonte de energia mundial.

O fato imediato é que a somatória de luz e calor tornou a vida muito melhor. Agora nossos antecessores podiam se aquecer, afugentar animais, iluminar acampamentos e cozinhar. “O domínio do fogo e o desenvolvimento de técnicas para construção de ferramentas foram fundamentais para o aumento populacional, para a sobrevivência humana e para o início do processo de sedentarização”, destaca Pedro Eurico Rodrigues, mestre em história pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Imagem meramente ilustrativa de incêndio florestal / Crédito: Divulgação/ Pixabay/ Ylvers

 

Domisticação em etapas

Essa grandiosa conquista passou por três estágios: a produção do fogo pelo homem, a manutenção das labaredas por meio de fogueiras e a posterior utilização de resinas, para que a chama das tochas se mantivesse acesa por mais tempo. Para se ter ideia, segundo arqueólogos israelenses, o indício mais antigo de uma fogueira data de 790 mil anos, às margens do Rio Jordão, entre Israel e a Jordânia.

Posteriormente, aprendeu-se que óleos (líquidos) e gorduras (sólidas) poderiam, também, servir de ‘alimento’ para o fogo, ou seja, de combustível”, relata Aécio Pereira Chagas, livre-docente em físico-química pela Unicamp e autor de A História e a Química do Fogo (editora Átomo).

Dessa versão rudimentar das lamparinas derivou-se a vela, até hoje tão presente no nosso cotidiano. Os avanços se sucederam e, no Neolítico, entre 10 mil a.C. e 4 mil a.C., o fogo permitiu a obtenção de metais: cobre, depois o bronze (liga de cobre e estanho) e, mais tarde, o ferro. “Os fornos primitivos para a obtenção de metais eram aquecidos com carvão e soprados com foles feitos de couro, sem os quais não era possível atingir a temperatura necessária para a fusão do metal”, descreve Chagas.

Não é difícil imaginar como os artefatos metálicos, então criados, favoreceram a agricultura, os afazeres domésticos e os conflitos entre grupos rivais.

O lado mortal do fogo

Há pelo menos 2 mil anos, os chineses perceberam que poderia existir fogo sem ar, ou seja, que ele poderia ser produzido na ausência de oxigênio. Assim a pólvora, mistura bem triturada de nitrato de potássio, enxofre e carvão, estreou na história, mostrando sua versatilidade.

Os chineses descobriram aplicações da pólvora nos fogos de artifício, utilizados não apenas em comemorações, mas para sinalização noturna, e também, como não poderia deixar de ser, na guerra: os foguetes”, lembra Chagas.

Não se sabe se foram os árabes ou os mongóis os responsáveis por apresentar a pólvora aos europeus. Contudo, o material adentrou o Ocidente e, no final da Idade Média, era conhecido em boa parte da Europa, que viu no reforço da artilharia um poderoso instrumento de destruição e poder.

Os canhões rudimentares, chamados bombardas, que arremessavam pedras e pedaços de metal, foram aprimorados mediante este novo “ingrediente” mortífero. Nessa mesma época, o Império Bizantino valeu-se também de outro artifício, o fogo grego, implacável nos combates marítimos por incendiar-se facilmente e não se apagar com água.

Ele era resultado da mistura de salitre, enxofre, alcatrão ou piche e resinas (algumas ainda incluíam cal), acondicionada em vasos com um orifício, por onde despontava uma mecha a ser acesa. Uma vez arremessado nas embarcações inimigas, o fogo grego queimava as madeiras e se espalhava até consumir o que estivesse pelo caminho.

“Outra maneira de utilizar o fogo grego era colocando a mistura incendiária na superfície da água, por onde passaria o navio inimigo, como as atuais minas navais. A cal, reagindo com a água, produzia calor suficiente para incendiar a mistura, que flutuava”, detalha o autor. As mãos dos combatentes também passaram a manusear armas de fogo.

Inicialmente, dotadas do mecanismo de pederneira — aquele princípio primitivo para produzir faíscas e fazer fogo a partir do atrito com a rocha sílex. A primeira arma desse tipo foi criada na Alemanha, em 1540, conquistando a corte do rei Luís XII, da França, por volta de 1610, e da rainha Anne, da Inglaterra.

A chamada Pistola da Rainha Anne fez sucesso entre 1702 e 1707. Pistolas, espingardas, revólveres, rifles, carabinas e outras tantas variações do fogo a serviço do confronto atiçaram o espírito bélico das sociedades, dilacerando a história com quantidades até então inéditas de sangue, como observou o historiador britânico Neil MacGregor no livro 'A História do Mundo em 100 Objetos' (editora Intrínseca):

O século 20, mais do que qualquer época anterior, registrou e expressou o sofrimento em massa das vítimas comuns da guerra: os soldados e os civis que pagaram por ela com suas vidas”.
Gravura da criação da pólvora / Crédito: Museum Plantin-Moretus/ Domínio Público

 

Motor do progresso capitalista

O historiador britânico lembra também que, sem o fogo, não haveria Revolução Industrial e, consequentemente, o crescimento dos mercados e do consumo de massa, traços definidores do século 19, que nos impactam diretamente até hoje.

No centro dessa ebulição histórica estavam as máquinas. Os modelos a vapor surgiram, na Inglaterra, no século 18, com o intuito de maximizar o trabalho nas minas de carvão, que abasteciam caldeiras e fornos. Depois impulsionaram barcos, navios, locomotivas, teares, forjas, tornos e todo o aparato que possibilitou a consolidação das indústrias e da vida urbana.

Já a ideia do motor a explosão, que dispensava as caldeiras, uma vez que a combustão se dava dentro do cilindro do motor, data do século 17 e é atribuída ao físico holandês Cristiaan Huygens (1629-1693). Porém sua patente só foi requerida em 1805.

Não demorou para que o petróleo fosse eleito o melhor alimento para esse tipo de tecnologia. Entretanto, as consequências dessa diretriz, que perdura até os nossos dias, devido à dependência da economia mundial em relação aos combustíveis fósseis, são a poluição desmedida e a crise climática.

Esta queima de combustíveis, que faz funcionar a maioria dos motores, também é responsável pelo aumento da emissão de gás carbônico no ambiente, elevando consequentemente a temperatura do planeta, o chamado efeito estufa”, explica Chagas.

É duro reconhecer que o modo de vida que começou a se desenhar no lampejo da primeira faísca produzida pelo homem tem cobrado um preço altíssimo. Ninguém escapa. A queima dos combustíveis fósseis produz partículas finas carregadas de toxinas, minúsculas o suficiente para contaminarem os pulmões e debilitarem a saúde.

Um estudo recente, liderado pela Harvard University, nos Estados Unidos, em parceria com universidades britânicas, revelou que mais de 8 milhões de pessoas em todo o mundo morrem a cada ano por inalação de ar contendo partículas da queima de combustíveis como carvão mineral, gasolina e diesel. Sofrem os humanos, padece o planeta Terra, e eles são ameaçados pelo aquecimento global e seus desdobramentos.

Queimadas: herança milenar

Voltemos ao cenário fumegante dos incêndios que, infelizmente, costumam se alastrar pelo Centro-Sul do Brasil entre maio e setembro, período de maior estiagem. “Nessas regiões predominam os biomas Cerrado e Mata Atlântica, naturalmente mais suscetíveis ao fogo”, alerta o biólogo Sérgio Marçon, coordenador de fiscalização e biodiversidade da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Meio Ambiente (SIMA).

Este pode parecer um problema atual, desencadeado por falta de zelo, conhecimento ou ganância no trato da terra, somados à instabilidade climática. No entanto, desde os primórdios, o fogo tem sido usado como instrumento de transformação da paisagem em larga escala. “Isso aconteceu a partir do momento em que as populações humanas passaram a dominar seu uso e propagação no Paleolítico”, afirma Marçon.

Adiante, com a introdução da agricultura, as queimadas passaram a ser utilizadas para “limpar” o terreno após a derrubada da mata. Ainda é assim. Melhor seria se elas fossem restritas e controladas. Porém isso está longe de acontecer. Na última década, o Brasil bateu recorde de focos de calor: 222 mil casos.

Existe, contudo, uma técnica mais amigável, herdada dos indígenas pré-colombianos, chamada roça de coivara ou cultivo de corte e queima. O termo de significa empilhar e tornar a queimar troncos e galhos não consumidos em uma primeira queima.

Esse sistema de cultivo foi adotado por nossos ancestrais após a domesticação das primeiras espécies vegetais, na passagem do Paleolítico para o Neolítico, há cerca de 10 mil anos. Nos últimos três séculos, o cultivo de coivara ficou restrito aos trópicos, uma vez que o aumento da densidade populacional e a destruição das florestas impossibilitaram essa prática na Europa e em parte da Ásia continental.

Entretanto, estima-se que entre 35 milhões e 1 bilhão de pessoas no planeta ainda dependam desse sistema diretamente ligado à subsistência. No Brasil, ele é praticado, sobretudo, na Amazônia e em áreas de Mata Atlântica por comunidades tradicionais.

“As roças de coivara fazem parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (em processo de reconhecimento como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan) e parte central do manejo dos recursos naturais do Vale do Ribeira, em São Paulo, que promovem há mais de 200 anos a conservação da Mata Atlântica na região”, informa o Instituto Socioambiental (ISA).

A queima controlada da vegetação em comunidades tradicionais é regulamentada e consiste numa prática sustentável. Ela funciona assim: O manejo, livre de agrotóxicos, dura, no máximo, cinco anos. Após esse tempo, a área, delimitada pela legislação, é abandonada para a recomposição da vegetação nativa e iniciada em outra parte.

Por ser itinerante, ela não extenua o solo nem condena a floresta para sempre, além de preservar as sementes, garantindo a segurança alimentar da população. Mas, infelizmente, por todo o país prevalece a dinâmica de se desmatar primeiro e, na sequência, empregar a queimada sem qualquer cuidado ou responsabilidade ambiental.

Os efeitos combinados do desmatamento e crise climática podem gerar uma perda de até 58% das espécies florestais até 2050”, adverte a ONG de defesa do meio ambiente, WWF-Brasil.
Imagem meramente ilustrativa de incêndio florestal / Crédito: Divulgação/ Pixabay/ brokolinos

 

A seca e os incêndios florestais

Os estragos ocasionados pela interferência humana indevida na natureza aliada a condições climáticas desfavoráveis são alarmantes, como vimos acontecer recentemente na Amazônia e no Pantanal. Os extremos climáticos, ou seja, secas prolongadas ou chuvas mal distribuídas, favorecem os incêndios florestais. Estes, por sua vez, emitem grandes quantidades de CO2 na atmosfera, acelerando o aquecimento global e reforçando as condições adversas para que o fogo se alastre com facilidade.

Enquanto ambientalistas, ONGs e governos direcionam esforços para salvar o planeta desse ciclo nefasto, cada um de nós pode atuar na brigada da prevenção a incêndios, controlando as variáveis que geram o fogo. O comburente, o oxigênio, está disponível em grande concentração na atmosfera. Então, o jeito é controlar o combustível (biomassa, no caso de incêndios florestais) e a ignição.

Segundo Marçon, por um lado, deve-se conscientizar a população para que se evite jogar bitucas de cigarro, soltar balões e queimar o lixo. Por outro, é preciso investir no manejo do fogo e em práticas de queima controlada de áreas determinadas.

“Dessa forma, quando um evento inesperado acontece, ele não consegue se expandir tanto, encontrando baixa disponibilidade de biomassa no solo”, frisa o especialista. Do ponto de vista histórico, a preocupação com o fogo nas matas é nova como um broto. “Em áreas florestais não se tem tantos registros antigos, pois o viés de preocupação ambiental dos incêndios é recente”, diz Marçon. Contudo, o biólogo ressalta os avanços na área da prevenção a incêndios.

“Nos últimos 15 ou 20 anos, houve uma evolução grande na legislação ambiental e também na que regulamenta o uso do fogo, tornando mais claras as possibilidades de uso, competências para autorização, limites e punições. A conscientização da população também cresceu, o que contribui para medidas preventivas.”

Tendo em vista o engajamento cada vez maior das novas gerações em relação à proteção do planeta, a tendência é que a irresponsabilidade no uso do fogo dê lugar à visão sistêmica e consciente de que uma fagulha é suficiente para destruir o que a natureza levou milhares de anos para criar.

“Hoje, com o crescimento da consciência ambiental entre os cidadãos médios e da percepção das consequências advindas das mudanças climáticas, o homem está buscando novamente dominar o fogo para evitar grandes atástrofes. É um percurso curioso”, sublinha Marçon.

Paralelamente, cresce o investimento em fontes alternativas de energia. Será que o hidrogênio, limpo e sustentável, fará uma revolução à altura da propagada pelo fogo?


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