Do período colonial até o Estado Novo: a luta pela autonomia feminina
Aventuras Na História
Sempre que ouvimos falar das caravelas portuguesas que chegavam ao Brasil no século XVI, imaginamos aventureiros no convés, prisioneiros degredados ou mandatários do rei que vinham impor nessas terras as normas que vigiam por lá. Mas... E as mulheres que por aqui aportaram?
Pouquíssimas mulheres desembarcaram nas praias brasileiras durante o processo inicial da colonização que se deu. Aquelas que vieram com seus maridos tiveram que iniciar uma vida absolutamente solitária, em terra desconhecida e com hábitos estranhos. O pior eram os arranjos matrimoniais que ocorriam, com um mesmo homem branco cristão se unindo a várias filhas dos chefes indígenas, tudo em prol de um melhor intercâmbio no comércio das trocas.
Em outras palavras, a traição relativamente velada que as mulheres sofriam do lado de lá do Atlântico, aqui era explícita, necessária e degradante. Contudo, o papel reservado àquelas poucas mulheres mantinha-se o mesmo, fosse onde fosse: parir um herdeiro.
Para essas ermitãs, a luta pela autonomia só pode começar no próprio empoderamento dentro dos limites da habitação em que viviam, com o estabelecimento de regras mínimas que tornassem as suas vidas um pouco menos submissas.
As mudanças
Alguns séculos depois, já se encontra nessas terras brasileiras um contingente grande de mulheres nascidas aqui e que vivem com os seus maridos nas fazendas do interior e nas cidades do litoral. Sofrem e são obrigadas a se submeter à tutela masculina, mas os sopros de liberdade pelo mundo começam a ser percebidos no Brasil.
Junto à Inconfidência Mineira, que reivindica rompimento, diferentes clamores de liberdade aparecem, sejam políticos, humanos, religiosos, literários ou de pensamento. Um embate começa: livros proibidos chegam, a corte francesa em Versalhes passa a ser conhecida pela libertinagem, enquanto, por outro lado, a corte portuguesa aporta no Rio de Janeiro o seu conservadorismo exacerbado.
Nesse contexto de exploração de ouro e de gente escravizada, mulheres burguesas de uma colônia que se moderniza e enriquece passam a conviver com um prenúncio de liberdade que chega: o direito ao prazer em seu próprio corpo.
A traição conjugal a que são submetidas começa a ser sentida também sobre um outro enfoque. Não se trata apenas do questionamento de um patriarcado que concede ao homem a permissão da busca de prazer sexual nas ruas, mas o porquê do impedimento desse mesmo prazer às mulheres casadas.
A possibilidade de a função feminina ir além da materna — a de simples entrega de filhos à sociedade —, vai enfurecer uma nobreza retrógrada que chega de Lisboa com a família real. Muitas vezes, serão manicômios, prisões e conventos o destino de tantas dessas mulheres que se insubordinam e passam a exigir direito ao prazer e autonomia do próprio corpo.
No início do século XX, após o fim da escravatura, muitas mulheres libertas, ou descendentes dessas, dão início a uma necessária busca por trabalho nas cidades, principalmente em fábricas e comércios ambulantes.
É uma luta particular de cada uma delas, que ocorre na ausência de uma planificação governamental. As traições conjugais persistem como uma norma machista a ser aceita nos lares, mas as mulheres que se inserem nas fábricas ganham um novo espaço de reivindicação.
Reúnem-se em grupos, participam de sindicatos, exigem direitos e conseguem votar pela primeira vez na década de 1930. Também nas artes, na semana de 22, a voz feminina se faz presente, com força e vontade, e prossegue mais, em livros, jornais, faculdades e no Congresso. A eterna luta por liberdade e autonomia sofre reveses, porém, sentidos por todos, com a chegada de um Estado Novo.
Em um cenário amplificado, algumas mulheres começam a ter que conviver com um tipo de situação que irá além de uma habitual traição de corpos, mas será de almas. As ambições políticas dessas mulheres, seus desejos de transformações, suas forças revolucionárias, tudo isso passa a ser alvo de um senhor que se quer absoluto dentro de sua casa e teme a concorrência que surge.
Por fim, no decorrer que prossegue em nossos dias, as mulheres se reinventam na superação das traições que sofrem, ora na conquista de uma legislação mais adequada, ora no espaço público das redes sociais. Mas sempre em busca de sua autonomia.
*Alvaro Mendes é professor aposentado e escritor. Autor do romance “O Mistério dos Hagis”, em e-book pela Amazon, e da dramaturgia “Segundos Fora”, sua publicação mais recente é o livro de contos Quatro Marias. Durante a carreira literária, foi premiado diversas vezes, como no Beverly Hills Screenplay Contest (2016), pelo roteiro “Families”; no concurso promovido pela Travassos Editora (2019), com o conto “Carnem Levare”; no concurso do Ministério dos Direitos Humanos (2018), com a crônica “Habitat”; no 1º Concurso Nacional de Contos – Antologia Aglac (2021), pelo conto “A morte do senador não foi acidental”; e no Prêmio Off Flip (2024), pela crônica “Por Aí”.