Fazenda de cadáver: Onde a ciência estuda os mortos ao ar livre
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Sabe aquele papo de que a grama do vizinho sempre é mais verde? Pois bem, isso realmente acontece no sentido literal da frase. Pelo menos esta é a visão de muitos dos vizinhos da Universidade do Sul da Flórida. O jardim da instituição se destaca. No meio de seu gramado, afinal, há alguns arbustos que podem bater um metro de altura.
A paisagem parece mais a de parques que você levaria a família para um passeio. Porém, seria praticamente impossível ficar muito tempo no local.
Não é pra menos, a grama lá é mais verde por um simples motivo: ela se alimenta de substâncias que são liberadas por cadáveres humanos que passam várias semanas apodrecendo ao ar livre.
Mas isso não se trata de uma exposição bizarra ou de algum costume sórdido. O fato pode ser explicado com uma simples palavra: ciência. Embora, estudos feitos dessa maneira resultem em polêmicas entre a comunidade científica. Conheça as fazendas de cadáveres!
Corpos 'livres'
Fazenda de cadáveres é a forma como o campo usado pela Universidade do Sul da Flórida é chamando, embora quem trabalhe no local prefira um nome mais técnico, como cemitério forense ou laboratório de tafonomia.
O terreno, de pouco mais de um hectare, abriga 15 corpos humanos espalhados. Por lá, todos eles estão nus, alguns protegidos por uma jaula de metal e outros cobertos com um plástico azul. Há ainda aqueles que estão enterrados e outros, menos afortunados, que estão completamente expostos ao ar livre.
O campo opera, desde 2017, no condado de Pasco, que fica a cerca de 25 minutos da cidade de Tampa. O campo fica numa zona rural, perto de um presídio.
Inicialmente, a fazenda ficaria no condado de Hillsborough, a 80 quilômetros dali, porém, os moradores da região não gostaram muito do projeto, temendo que o odor da decomposição humana e a exposição dos corpos pudessem desvalorizar suas propriedades.
Os estudos
Esses laboratórios de tafonomia possuem um simples e importante objetivo: estudar o que acontece com um organismo após sua morte. Para isso, a universidade americana aproveita de pessoas que, antes de morrer, decidiram doar seus corpos voluntariamente para que fossem estudados pela ciência.
Muito se engana quem pensa que isso é uma coisa fora do comum. Para se ter ideia, desde que foi inaugurado, em 2017, dados repercutidos pela BBC em 2019 revelaram que o cemitério recebeu 50 corpos.
A instituição também tem uma lista de 180 pré-doadores, ou seja, de pessoas que ainda estão vivas, mas que já decidiram que, após a morte, tem como objetivo se entregar de corpo e alma para a ciência.
A compreensão desse processo de decomposição pode trazer dados valiosíssimos para a resolução de crimes e para melhorar as técnicas de identificar pessoas, entre outras coisas.
Quando alguém morre ocorrem muitas coisas ao mesmo tempo (no corpo)", explica Erin Kimmerle, diretora do Instituto de Antropologia Forense da Universidade do Sul da Flórida, em entrevista à BBC. "Ocorre desde a decomposição natural, até a chegada de insetos e mudanças na ecologia."
Para entender o processo de decomposição da melhor maneira possível, Kimmerle e sua equipe acreditam que a melhor maneira para se fazer isso é observando os corpos em tempo real e em um ambiente real.
Segundo explica Erin, o corpo passa por quatro etapas pós-morte: 1) chamada “corpo fresco”, que é quando a temperatura do cadáver cai e o sangue deixa de circular; 2) a “decomposição inicial”, quando as bactérias começam a consumir tecidos, aqui a cor da pele também começa a mudar; 3) ”decomposição avançada”, quando os gases acumulam, o corpo incha e os tecidos se rompem; 4) é a “esqueletização”, que pode ser vista, primeiramente, no rosto e nas extremidades, como mãos e pés.
Análise
No local curioso existem diferentes tipos de estudo em relação aos corpos. Determinados restos podem ser inseridos em grades de metal, para evitar o ataque de animais e especificamente aves de rapina. Assim, pode-se estudar a decomposição tecidual. Esse método também permite a observação de vermes que se alimentam dos órgãos internos.
Porém, há outros que são totalmente expostos. Este já sofre com a fome dos animais, que fazem buracos na pele, rasgam seu tecido e aproveitam ao máximo tudo que um corpo humano pode oferecer.
Paralelamente a isso, os pesquisadores visitam os cadáveres todos os dias, observando como a decomposição evolui e tirando foto de todos os detalhes possíveis. Além do mais, geólogos e geofísicos também trabalham em conjunto, avaliando o solo, ar, água e vegetação onde esses corpos estão. Analisando como as substâncias liberadas pelos corpos podem interferir no ambiente de decomposição.
Esses dados coletados podem ajudar, e muito, nas investigações forenses. Afinal, quando um crime é cometido e se encontra um corpo, seu estado de decomposição pode ajudar os pesquisadores a registrarem, por exemplo, quando a pessoa foi morta, ou se o corpo foi movido, enterrado, enfim...
Além do mais, as substâncias expelidas pelos cadáveres podem ajudar a identificar a origem da pessoa. Isso, diante de outros dados genéticos, pode fornecer informações para crimes ainda não resolvidos.
Limitações
Apesar de toda boa vontade dos pesquisadores, as fazendas de cadáveres possuem suas limitações. "O problema com essas instalações abertas é que existe uma série de variáveis que não se pode controlar, mas apenas monitorar", explica Patrick Randolph-Quinney, antropólogo biológico da Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido em conversa com a BBC.
Isso torna os dados que eles produzem muito mais difíceis de interpretar, porque eles não se prestam facilmente para fazer previsões", explica.
Já Sue Black, antropóloga forense da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, também tem suas ressalvas. Em um artigo publicado na Nature, ela questiona o valor científico desses laboratórios de tafonomia, visto que seus estudos são baseados em pequenas amostras e resultados altamente variantes. Além do mais, ela considera esses espaços "um conceito espantoso e macabro".