Fotos dos Sonderkommando: resistência, testemunho visual e vestígios do horror nazista
Aventuras Na História
Muitos já escreveram sobre a humanidade viver a época da pós-verdade, na qual a disputa pelas narrativas, sejam elas verdadeiras ou não, determinam, muitas vezes, a compreensão de eventos históricos. Esse, entretanto, não é um fenômeno recente.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o regime nazista procurou esconder o que acontecia nos campos de concentração e extermínio e, quando perceberam que a derrota se aproximava, tentaram apagar os vestígios para tornar inimagináveis as atrocidades que cometeram.
Contudo, os materiais que resistiram ao apagamento nazista somados aos relatos dos sobreviventes nos permitem, hoje, ter uma dimensão, ainda que incompleta, da estrutura e práticas de terror criadas pelo Terceiro Reich.
Vestígios
A barbárie cometida pelos nazistas deixou vestígios que sobreviveram às tentativas de destruição por parte dos oficiais alemães no final da guerra. Campos de concentração e de extermínio, como Auschwitz e Majdanek na Polônia, ainda têm algumas estruturas preservadas e são abertos a visitação; materiais de propaganda antissemita, vídeos com discursos de Hitler, de Goebbles e de outras lideranças nazistas, documentos da burocracia nazista, pertences das vítimas assassinadas e fotos são alguns dos materiais que permitem às gerações que não testemunharam essa barbárie aprender sobre ela.
Quatro fotos tiradas por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau estão entre esses materiais que deixaram registrado para a posteridade o horror inimaginável. São vestígios, no entanto, que se diferenciam de muitas outras fotos do período.
Compreendem imagens feitas por judeus que faziam parte dos Sonderkommando, ou seja, prisioneiros que eram obrigados, sob ameaça de pena de morte, a trabalhar nos campos de extermínio.
Eles executavam uma variedade de tarefas atrozes: como levar os recém-chegados às câmeras de gás, recolher seus corpos, coletar objetos de valor (até dentes de ouro), queimar os cadáveres em fornos crematórios, limpar os dejetos e descartar as cinzas.
Essas fotografias foram tiradas clandestinamente e enviadas, acompanhadas de um bilhete, num tubo de pasta de dente para pessoas da resistência polonesa que estavam fora de Auschwitz:
"Urgente. Envie dois rolos de filme metálico para câmera 6x9 o mais rápido possível. Temos a possibilidade de tirar fotos. Estou enviando imagens de Birkenau - ação de envenenamento por gás. Essas fotos mostram uma das fogueiras onde corpos foram queimados, quando os crematórios não conseguiram queimar todos os corpos. Os corpos em primeiro plano estão aguardando para serem jogados no fogo. Outra imagem mostra um dos locais na floresta, onde as pessoas estão se despindo antes do "banho" - como lhes disseram - e então vão para as câmaras de gás. Envie os rolos de filme o mais rápido que puder! Envie as fotos anexas para Tell [pseudônimo de membro do movimento clandestino em Cracóvia]- achamos que você deve enviar as ampliações adiante", escreveu Stanisław Kłodziński, membro da resistência, em 4 de setembro de 1944.
A mensagem, em tom de urgência, expressa a necessidade de registrar a barbárie. Talvez, também com o intuito de deixar vestígios para as gerações futuras, mas muito mais como um registro-denúncia direcionado para as pessoas daquele presente.
Registrar clandestinamente algumas das maiores atrocidades que ocorriam dentro do campo de extermínio foi, portanto, uma forma de resistência:
"A função de Auschwitz era negar a humanidade das suas vítimas e destruir as suas vidas e quaisquer documentos da sua existência. Opor-se à destruição de todas as imagens e tirar uma fotografia, apesar de tudo, significa, neste contexto, um ato de resistência – manter uma fotografia para o resto do mundo, resistir ativamente, reconhecer os outros e manter a sua própria humanidade", escreve Franziska Reiniger no artigo "Por Dentro do Epicentro do Horror – Fotografias do Sonderkommando", publicado no Yad Vashem.
Conjunto
O filósofo Didi-Huberman, ao visitar Auschwitz, deparou-se com três dessas fotografias em totens enormes. As imagens não estavam exatamente como as originais, mas recortadas e retocadas para ser possível ver melhor as cenas que retratavam. Esse processo, contudo, foi criticado pelo filósofo.
Didi-Huberman argumentou que as fotos devem ser vistas no conjunto das quatro que foram tiradas e sem nenhum tratamento. Para ele, enquadrar a cena para que fiquem mais visíveis os fatos que o membro do Sonderkommando, muito provavelmente Alberto Errera, tentou capturar - a cremação, em fossa incineradoras ao ar livre, dos corpos das pessoas assassinadas nas câmaras de gás e o envio de um grupo de mulheres à câmara de gás do Crematório V de Auschwitz - é como cortar a fala de uma testemunha.
As fotos em seu conjunto, diz o filósofo, revelam mais do que recortadas e retocadas, porque revelam a condição clandestina em que foram tiradas. A quarta foto, muitas vezes ignorada por registrar apenas árvores de Auschwitz, expressa ainda mais as “precárias e perigosas condições de produção” (Feldman, 2016).
O tratamento das fotos e a eliminação da última fotografia, ao contrário, dão a falsa sensação de que as vítimas tinham liberdade para fotografar o que acontecia no campo de extermínio, enquanto, segundo Didi-Huberman: “As sombras e a falta de foco dessas fotos mostram a urgência e o perigo com que foram feitas. Eliminar isso com o pretexto de que prejudicam a visibilidade é errado. Essas fotos são testemunhos, e é desonesto cortar a fala de uma testemunha. Temos que escutar também seus silêncios.” (Didi-Huberman, 2003 apud Feldman, 2016).
Didi-Huberman nos ajuda, portanto, a extrair as informações que esses testemunhos visuais nos permitem acessar e seus apontamentos nos fazem atentar para alguns cuidados importantes no trabalho com fontes históricas. A ânsia de adaptá-las, de torná-las mais compreensíveis a quem as consulta pode gerar interpretações equivocadas ou ainda perdas consideráveis de informações.
Alguns historiadores atentam para outro cuidado importante ao lidar com testemunhos visuais. Se, por um lado, as fotografias tiradas pelos Sonderkommando têm importante papel como testemunho e são reveladoras da barbárie inimaginável, por outro, seu uso e exposição exigem cuidados. Fotografias de eventos extremos de violência, quando utilizadas sem contexto e sem um trabalho acurado, podem ter o efeito contrário do pretendido e desumanizar ainda mais as vítimas.
A importância
Um entre cinco jovens nos EUA acredita que o Holocausto é um mito e 66% das pessoas da geração Y - aqueles que nasceram entre o início da década de 1980 e o final de 1990 - não sabem o que foi Auschwitz. Um terço dos europeus não sabe nada sobre o genocídio que assassinou 6 milhões de judeus, centenas de milhares de ciganos, uma quantidade ainda desconhecida de pessoas negras, entre outras vítimas, na Europa. No Brasil, uma pesquisa feita em 2019, revelou que 22% dos brasileiros nunca tinham ouvido falar sobre Holocausto e 15% acham que há um exagero nas informações sobre o total de judeus assassinados pelos nazistas.
São dados que nos alertam para a desinformação, distorção e negacionismo do Holocausto e que nos desafiam a encontrar caminhos para combater mentiras que se propagam com tanta facilidade pelos meios digitais. Os vestígios das atrocidades cometidas pelos nazistas, sem dúvida, são ferramentas essenciais nesse processo.
As diversas fontes históricas - como fotos, depoimentos, vídeos da época - quando usadas de forma acurada, responsável e em conjunto são fundamentais para a aprendizagem sobre o Holocausto atrelada aos Direitos Humanos. As imagens gráficas podem ser conferidas aqui.
*Melanie Grun é mestre em Humanidades (FFLCH/USP), pesquisadora de temas relacionados à identidade no refúgio e no exílio no CEPIM (Centro de Estudos de Proteção Internacional às Minorias)/USP, membro do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos e Vulnerabilidades (UniSantos) e voluntária da área de Acolhimento e Proteção a Refugiados no instituto ADUS em São Paulo.
*O texto acima foi proporcionado pela StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.
Referências
BARBOSA, Vanessa. Sabe o que foi Auschwitz? Muita gente não sabe — e isso é perigoso. Exame. 12 abr 2018. Mundo. Disponível aqui.
FELDMAN, Ilana. Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul. 2016. ARS (São Paulo), 14(28), 134–153.
PILAGALLO, Sofia. Holocausto: desinformação marca data em memória das vítimas. R7. 27 jan 2022. Internacional. Disponível aqui.
PREVIDELLI, Flávio. Um em Cada Cinco Jovens Americanos Acredita que o Holocausto é um Mito. Aventuras na História. 13 dez 2023. Notícias. Disponível aqui.
REINIGER, Franziska. Inside the Epicenter of the Horror – Photographs of the Sonderkommando. Yad Vashem. Disponível aqui.
SANZ, Juan Carlos. Um terço dos europeus mal ouviu falar do Holocausto. El País. 28 de nov de 2018. Internacional. Disponível aqui.