Há 60 anos, Martin Luther King Jr. reunia 250 mil pessoas pela igualdade entre brancos e negros
Aventuras Na História
“Não estou descartando a ideia de fazer uma marcha em Washington, ou até mesmo protestos no Congresso para fazer essa questão ser dramatizada ao ponto que não possa ser ignorada. Estou pensando agora em todas as pessoas de boa fé, brancas e negras, que estão preocupadas com o sonho americano e com a implementação de princípios básicos da nossa democracia.”.
Martin Luther King Jr. revelou os planos da célebre marcha ocorrida em 28 de agosto de 1963, na capital dos Estados Unidos, em entrevista a David Susskind, veiculada em 9 de junho daquele mesmo ano pela WPIX TV New York. Cerca de dois meses antes, o pastor batista e líder do Movimento Americano pelos Direitos Civis tinha sido preso após protestos pacíficos, como passeatas e gestos de desobediência civil, realizados em Birmingham, a cidade mais segregada dos Estados Unidos, no Alabama.
Em sua cela, ele pediu ao carcereiro algumas folhas para que pudesse escrever. Negativo. Diante da recusa, juntou pedaços de papel higiênico e bordas de jornais e redigiu a famosa “Carta da prisão de Birmingham”. A mensagem se dirigia a um grupo de clérigos brancos, críticos de suas atividades, supostamente geradoras de caos e desordem, explicando a eles a necessidade dos protestos não violentos como propulsores da justiça social e da igualdade entre brancos e negros.
King lutava pela conscientização das pessoas contra a “privação trágica dos direitos constitucionais básicos”, uma vez que a segregação racial infringia a 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, adotada em 1868, a fim de proteger perante a lei a cidadania e a igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Ainda que esta causa lhe custasse a vida, ele estava nela por inteiro. Sem temor.
A prova disso é que, mesmo no auge dos atentados e das perseguições que sofrera, continuou a circular pelo país sem guarda costas. O menino nascido em Atlanta, Geórgia, em15 de janeiro de 1929, filho do reverendo Martin Luther King, líder da Igreja Batista Ebenezer, e de Alberta Williams King, sonhava em ser o pregador de uma grande congregação batista urbana no Sul dos Estados Unidos. Propenso aos estudos, terminou o ensino médio aos 15 anos, a faculdade aos 19, o seminário aos 22 e o doutorado em teologia pela Universidade de Boston aos 26. Estava mais do que preparado para disseminar o Evangelho.
“Em vez disso, quando morreu, em 1968, havia levado milhões de pessoas a romper para sempre o sistema de segregação racial. Moldara uma massa eleitoral negra que acabou com o racismo declarado nas campanhas políticas e acumulara para os negros um poder político maior do que jamais haviam tido no país. Acima de tudo, trouxera uma dimensão nova e mais elevada de dignidade humana para a vida dos negros”, destaca Coretta Scott King, viúva do ativista, no prefácio do livro ‘As Palavras de Martin Luther King’ (editora Zahar).
“Sua formação deu se dentro de um lar e de uma igreja fortemente enraizada na vibrante tradição evangélica negra norte americana. Em uma época em que as igrejas negras, principal mente as batistas e metodistas, vieram a se transformar em espaços de resistência e luta contra o racismo e a segregação racial nos Estados Unidos”, observa Lucimar Felisberto dos Santos, historiadora, pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.
A resistência de Rosa Parks
O apelo definitivo para que ele abraçasse a causa da igualdade racial veio de uma mulher: Rosa Parks. King e Coretta haviam se mudado para a cidade de Montgomery, Alabama, justamente num período dos mais turbulentos. Em 1954, a Suprema Corte dos Estados Unidos decretou a inconstitucionalidade da separação entre crianças negras e brancas em estabelecimentos educacionais. A reação contrária à integração foi violenta nos estados sulistas. Cidadãos brancos se organizaram em conselhos para tentar rever ter a decisão enquanto a Ku Klux Klan desfilava com suas tochas acesas, espalhando o terror.
O transporte público em Montgomery, por seu turno, fazia valer a discriminação com requintes de crueldade. De acordo com as leis do Alabama, negros tinham que se restringir à parte traseira dos ônibus, sentados ou em pé, mesmo que houvesse assentos livres na parte dianteira, reservada aos brancos. Além disso, tinham de pagar a passagem na entrada do veículo, descer, caminhar até a porta dos fundos pelo lado de fora, e só então reingressar. Não bastasse esse trâmite, muitos motoristas aceleravam e deixavam os passageiros para trás, mesmo depois de paga a passagem.
No final da tarde de 1º de dezembro de 1955,Rosa Parks, cansada após um dia de trabalho como costureira numa loja de departamentos, sentou se na primeira fila, bem atrás da seção exclusiva aos privilegiados. No entanto, o motorista ordenou que ela fosse para os fundos e lá ficasse de pé para que um homem branco se sentasse naquele lugar. Ela se recusou a fazê-lo e acabou sendo presa. Indignada e farta desse sistema, a comunidade negra propôs um boicote aos ônibus de Montgomery.
Martin Luther King ofereceu sua igreja para que lideranças se reunissem e acertassem os detalhes da mobilização. Por fim, o pastor fora eleito presidente da Associação pelo Progresso de Montgomery e o boicote começa ria em 5 de dezembro de 1955. “Durante mais de um ano, os 50 mil negros de Montgomery foram para seus trabalhos, escolas e igrejas a pé ou compartilhando carros.
Ao ver que o boicote estava realmente funcionando, a liderança branca da cidade decidiu encontrar pretextos para prender negros”, conta Coretta. O próprio King foi preso por andar a 50 km/h numa via cuja velocidade máxima permitida era 40 km/h. Ao todo, ele foi encarcerado 26 vezes.
De pastor a herói
Os EUA estavam diante de um novo herói. A revista Time lhe concedeu a capa com a seguinte manchete: “O erudito ministro batista negro que em pouco mais de um ano surgiu do nada para se tornar um dos mais extraordinários líderes da nação”. Martin Luther King foi, sim, um homem de seu tempo, entrelaçado a experiências religiosas, filosóficas e sociológicas.
“Acredito que o que mais chamou a atenção no ativismo dele foi justamente o fato de seu posicionamento político sistematizar uma agenda teológica liberal que organizava as estratégias de uma rede de extraordinários líderes locais e regionais que, junto às suas comunidades, criavam as condições de mobilização visando conquistas na luta pelos direitos civis, resultando em um grande movimento de massa com base nas comunidades locais”, disserta Lucimar.
A partir do boicote aos ônibus, ficou claro que aquele gesto não era apenas uma demonstração de resistência local, e sim um ato potente de alcance nacional e internacional como referência de luta por direitos fundamentais. Tanto é verdade que a Suprema Corte baniu a segregação nos ônibus em todo o estado do Alabama e, em21 de dezembro de 1956, eles foram integrados.
Não havia mais como conter o movimento pelos direitos civis. Novos grupos e iniciativas foram pipocando em diversas cidades, dentre eles, a Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC, na sigla em inglês), presidida por King e sediada em Atlanta. A partir dali, ele viajou o país e o estrangeiro dando conferências e participando tanto de reuniões como de manifestações. Em nenhum momento titubeou quanto à tática escolhida: desobediência às leis injustas e protestos não violentos.
Afinal, tinha como inspiração o líder indianoMahatma Gandhi. “Ele foi provavelmente a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acimada mera interação entre indivíduos, transformando a numa força social poderosa e eficaz em grande escala”, escreveu o ativista. Contudo, para a polícia, atos protagonizados por negros, ainda que pacíficos, eram considerados afrontas à ordem pública.
Por isso, a repressão imperava nas ruas. Cães, jatos d’água e detenções eram manobras corriqueiras. Após os protestos em Birmingham, em abril de 1963,houve manifestações em cerca de mil cidades americanas. A comunidade negra estava em polvorosa, cansada de esperar por mudanças que não se implementavam. Pelo contrário, pareciam cada dia mais distantes. King e outras lideranças, que haviam apoiado a eleição do presidente John Kennedy, até então, não tinham obtido a atenção esperada por parte do governo para a questão dos direitos civis.
Era preciso fazer algo monumental para pressionar as autoridades a aprovarem uma nova legislação federal que integrasse completa mente os negros à sociedade americana. No dia 28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas vindas de todas as partes do país se reuniram em Washington para participar do comício que ficou conhecido como A Grande Marcha ou Marcha sobre Washington.
Da escadaria do Lincoln Memorial, Martin Luther King proferiu seu célebre discurso intitulado “Eu tenho um sonho”. “Quando a televisão transmitiu a imagem dessa assembleia extraordinária através dos oceanos que nos limitam, todos os que acreditam na capacidade do homem de se tornar melhor tiveram um momento de inspiração e confiança no futuro da raça humana. E todo americano consciente pôde se orgulhar, na certeza de que uma experiência dinâmica de democracia na capital de sua nação foi exibida para o mundo”, ele escreveu.
Assim que o evento acabou, King e outros líderes da marcha se reuniram com o presidente John Kennedy na Casa Branca. A conversa se desdobrou em importantes avanços legais. Em1964, fora aprovada a Lei dos Direitos Civis, que proíbe a discriminação com base em raça, cor, religião, sexo, nacionalidade e, posteriormente, orientação sexual e identidade de gênero; e, em 1965, a Lei do Voto, que estabeleceu o fim das práticas eleitorais discriminatórias, decorrentes da segregação racial nos Estados Unidos.
Ambas foram assinadas pelo presidente Lyndon Johnson, já que Kennedy fora assassinado em 22 de novembro de 1963. Outra grande honraria chegou do estrangeiro em outubro de 1964. Martin Luther King havia sido agraciado com o Nobel da Paz. “Sinto como se este prêmio me tivesse sido dado por alguma coisa que realmente ainda não foi alcançada. É uma incumbência de sair e trabalhar ainda mais arduamente pelas coisas em que acreditamos”, ele disse em seu discurso de agradecimento em Oslo, Noruega.
Muita luta pela frente
Não poderia estar mais lúcido. De fato, apesar dos recentes avanços materializados em novas leis, a realidade nas ruas era cada vez mais tensa e violenta, uma vez que a discriminação continuava impactando a vida da população negra, em sua maioria, alijada de boas oportunidades educacionais e profissionais e, portanto, de uma vida economicamente digna. Estava cada vez mais difícil para King conter o anseio pelo revide por parte de certos grupos do movimento negro favoráveis à violência como estratégia de luta.
O Comitê de Coordenação Estudantil da Não Violência (SNCC), liderado por Stokely Carmichael, e a Organização pela União Afro Americana, comandada por Malcom X, estavam entre eles.
No entanto, o pastor jamais consentiria com uma revolução armada. “Uma resistência não violenta é a arma mais potente disponível para o povo oprimido em suas lutas por justiça e liberdade, pois o que vem depois dela é a redenção e a possibilidade da criação de uma comunidade amada”, ele afirmou em entrevista a David Susskind. E complementou: “A não violência não tem como objetivo destruir e aniquilar o adversário, mas ganhar sua amizade e entendimento”.
Nos anos seguintes, King se envolveu ativamente em duas frentes: o combate à pobreza em seu país e à Guerra do Vietnã. Com isso, angariou mais uma porção de desafetos que bradavam: “Seu negócio são os direitos civis, não se intrometa em outros assuntos da nação”. Já na visão de Lucimar Felisberto, a mudança no ativismo de Martin Luther King, quando ele ela bora um forte ataque à política militarista norte americana e passa a estabelecer uma íntima conexão entre racismo, pobreza e militarismo, foi uma prova de sua imensa lucidez e visão sistêmica.
“Desdobrando esse sentido da militância, passa a pregar, além das reformas políticas, a reestruturação do sistema econômico militar que produzia tanto o racismo, como a pobreza, no país e no mundo”, ela sublinha. Contudo, a imagem de King fora maculada pela campanha difamatória encabeçada pelo FBI a mando de seu diretor J. Edgar Hoover. O órgão considerava King o homem negro mais perigoso da América e, por esse motivo, estava empenhado em reunir todos os recursos para destruí-lo. Incluindo escutas telefônicas.
Agentes grampearam o telefone do ativista e de seus assessores, assim como o de 15 hotéis onde eles se hospedaram. Foi aí que os casos extraconjugais do pastor vieram à tona, o que, na leitura de seus adversários, fazia dele um promíscuo imoral indigno da confiança da população. Nessa época, King apresentava sinais de esgotamento físico e emocional.
No documentário King no Deserto, seus colegas contam que ele era workaholic, perfeccionista e exigente, convencido de que nunca fazia o suficiente pelas causas que defendia. Eles se preocupavam com sua saúde psíquica e até aventaram a ideia de encaminhá- lo a um psiquiatra. Mas desistiram por causa do risco de as sessões serem grampeadas pelo FBI. No começo de abril de 1968, a greve dos trabalhadores da limpeza urbana da cidade de Memphis, no Tennessee, atraiu o apoio de King.
Lá foi ele liderar a manifestação, que contava com 6 mil participantes. Antes, porém, ele e sua equipe tiveram que contornar uma ameaça de bomba contra o avião no qual viajariam. Na noite de3 de abril, mesmo padecendo de dor de cabeça, ele se levantou da cama no hotel e, debaixo deum temporal, se dirigiu ao Templo Mason para discursar para centenas de pessoas que o aguar davam no culto.
“Então, cheguei a Memphis e começaram a me falar das ameaças ou comentar as ameaças que vieram à tona. O que poderiam me fazer alguns de nossos doentes irmãos brancos?”, ele questionou. No dia seguinte, uma bala perfurou sua bochecha direita enquanto conversava, à vontade e brincalhão, da sacada do seu quarto no segundo andar do hotel Lorraine com um companheiro de luta que se encontrava no pátio Nascia um mártir.
Assassinato
Seu assassinato desencadeou uma onda de revoltas por diversas cidades americanas. O último sermão dele foi reproduzido em seu funeral na Igreja Batista Ebenezer, em Atlanta, por meio de uma gravação de 4 de fevereiro de 1968. Nela, King pedia que em sua despedida não houvesse menção aos seus prêmios e honrarias, e que fosse dito que ele tentou “alimentar os famintos”, “vestir os desnudos”, “estar certo na questão da guerra [do Vietnã]” e “amar e servir a humanidade”.
“Ele fala claramente para a geração atual como se tivesse sido matéria do jornal de ontem. As estratégias, filosofia e visão de mundo dele continuam relevantes”, opina Jesse Jackson, aliado na luta pelos direitos civis. “Ele nos intima tanto hoje quanto nos intimava em 1968. Espero que nós o escutemos e terminemos a fase seguinte do movimento dele. Ele falava da importância de seguir em frente. Ele dizia: ‘Não tem avião? Dirija. Não tem carro? Corra. Não pode correr? Ande. Não pode andar? Rasteje. Mas continue seguindo em frente”, acrescenta a colega Marian Wright Edelman, diretora da Associação Nacional pelo Avanço do Povo Negro (NAACP).
Aqui no Brasil os ecos de Luther King chegaram fortes. A mensagem do mais famoso discurso, “Eu tenho um Sonho”, em que defendeu uma sociedade onde todos seriam iguais sem distinção de raça e que negros e brancos pode riam conviver em harmonia, casou com as expectativas dos movimentos sociais do Brasil. “Mas é importante destacar que, ainda que os movimentos sociais brasileiros tenham intensificado a luta pela emancipação do povo negro a partir dos anos 1960, as origens de sua histórica luta estão nos períodos da escravidão”, frisa Lucimar Felisberto.
A partir do ativismo de Luther King, ela prossegue, abriu se a possibilidade de o enfrentamento do racismo ser um problema que abarca todas as nações envolvidas na diáspora negra, na medida em que ele foi além de seu amor nacionalista, por seu país, e afirmou um compromisso internacional com os pobres, marginalizados e excluídos de todo o mundo. Justamente por isso, acredita a acadêmica, ele se tornou uma grande ameaça.