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Milagre de Juazeiro: a história não contada da beata Maria de Araújo
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Milagre de Juazeiro: a história não contada da beata Maria de Araújo

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Aventuras Na História
29/01/2025 21h00
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1889 não foi um ano histórico para o Brasil somente pela perspectiva política, com a Proclamação da República em 15 de novembro. Naquele mesmo ano, um fenômeno religioso deu espaço à ascensão de uma figura muito celebrada pelos católicos do Nordeste brasileiro, sobretudo do estado do Ceará: o primeiro milagre do Padre Cícero.

Conta-se que o beato cearense conhecido como 'Padim Ciço' teria sido responsável pelo evento que deu origem à cidade de Juazeiro do Norte, à época um povoado na região do Vale do Cariri, nas proximidades do Crato: o sertão cearense.

Em Juazeiro, Padre Cícero coordenava um grupo de devotas chamado 'Apostolado da Oração', composto por cerca de 11 mulheres. Em uma noite daquele fatídico ano, o religioso ministrava a vigília do grupo quando, no momento da eucaristia, um fenômeno surpreendente impregnou a atmosfera do povoado: a beata Maria de Araújo, ao receber a hóstia sagrada, viu o pequeno círculo em sua boca se transformar em sangue puro.

Estátua de Padre Cícero na cidade de Juazeiro do Norte (CE) - Gabriel Boieras via Getty Images

Nascia, assim, o Milagre da Hóstia de Juazeiro: mito fundante da cidade apadrinhada pelo Padre Cícero.

Quem foi Maria de Araújo?

Incêndios da Alma
Capa do livro "Incêndios da Alma" - Divulgação

Apesar do milagre ser associado à figura do padre cearense, foi a beata Maria deAraújo quem protagonizou o fenômeno. Em entrevista ao site Aventuras na História, a doutora em História Dia Nobre, autora do livro 'Incêndios da Alma' e especialista no estudo da beata, compartilhou detalhes sobre o episódio. 

"Maria de Araújo era uma mulher negra, filha provavelmente de pessoas forras. Ela nasceu em 1862, já liberta. Veio de uma família pobre, com muitos irmãos, e se dedicava a lavar roupas. Ela trabalhava como lavadeira e costureira".

Nobre destaca que até seus 27 anos — à época em que se tomou conhecimento do milagre — Maria era uma mulher simples e dedicada à vida religiosa. Entrou no apostolado de Padim Ciço com o objetivo de se tornar freira, apesar do privilégio ser reservado às mulheres brancas da elite social; por isso não conseguiu alcançar a meta.

Ela tinha um repertório muito erudito para uma mulher da época. Durante seus testemunhos, chega a citar passagens inteiras da Bíblia, e faz as citações em latim", complementa a autora.

Santidade

A escritora deu ênfase aos evidentes sinais de santidade da beata. Após o milagre, quando os padres Glicério da Costa Lobo e Francisco Ferreira Antero se dirigiram até Juazeiro a pedido do arcebispo do Ceará, eles atestaram o milagre com uma equipe de médicos, os quais realizaram uma bateria de exames em Maria.

No momento da visita, foi descoberto que a beata carregava os estigmas de Cristo: marcas da crucificação distribuídas em seus pés, mãos e testa. Acredita-se que as pessoas que carregam essas marcas são conhecidas por serem piedosas, com vocação natural à santidade.

Dia Nobre relembra que, nos registros de Maria, ela cita que teve diversas visões e encontros espirituais com o próprio Jesus Cristo:

"Ela conversava com ele. (...) Aos 18 anos, ela conta que casou com Cristo numa cerimônia realizada na capela de Nossa Senhora das Dores. E na cerimônia estavam São José, Maria e vários anjos".

Retrato da beata Maria de Araújo - Município de Juazeiro do Norte

Polêmicas

A história do 'milagre da hóstia de Juazeiro', contudo, não ficou ilesa de polêmicas e incertezas. Em um contexto em que a Igreja Católica se esforçava para desvincular as experiências das mulheres de fenômenos religiosos, explica Nobre, o bispo do Ceará, recusando-se a acreditar no milagre de Maria, enviou outro padre — Alexandrino de Alencar — ao povoado, visando provar que a beata era uma falsária.

Conforme conta a autora, o padre Alexandrino fez novos exames em Maria e, após, a visita, escreveu um relatório à diocese do Ceará, afirmando que a beata era uma embusteira.

Minha tese é: durante esse processo, há um deslocamento da crença, feito pelos padres, que sai da beata e vai em direção, primeiro, à N. Senhora das Dores – padroeira da capela de Juazeiro – e, depois, ao Padre Cícero, após sua morte", destaca a autora.

Nobre relembra que o silenciamento em torno de Araújo ocorreu a partir de 1894, quando a Igreja Católica de Roma decidiu seguir o posicionamento do bispoD. Joaquim José Vieira, ordenando a destruição de todos os objetos, fotos, registros e documentos relacionados à beata. Quem confessasse publicamente sua fé em Maria era, inclusive, proibido de se confessar.

A polêmica parece ecoar ainda na atualidade. Dia conta que, durante o trabalho de pesquisa na diocese do Crato, seu acesso aos documentos foi limitado pela administração: 

"Parte dos documentos estava nos arquivos secretos do Vaticano. Eu passei 10 anos estudando isso e, quando a diocese do Crato soube que eu queria fazer uma pesquisa sobre Maria de Araújo, eu perdi o acesso à grande parte da documentação. Inclusive, cheguei a receber uma carta de uma freira falando que minha pesquisa era muito perigosa, alegando que isso poderia prejudicar a imagem do Padre Cícero".

Legado

Em razão das determinações de Roma, Maria de Araújo foi forçada a viver o resto de sua vida em reclusão, em uma casa de caridade. Morta em 17 de janeiro de 1914, acredita-se que seu corpo tenha sido enterrado, inicialmente, na capela do Socorro, na região do Vale do Cariri.

Por "motivos desconhecidos", o túmulo foi violado e o corpo de Maria desapareceu misteriosamente. O paradeiro do cadáver da beata não foi descoberto até hoje.

A gente tem um apagamento, que é primeiro um apagamento da memória, e, depois, um apagamento material, porque você some com o corpo dela e tira todas as possibilidades de construção da memória", comenta Nobre.

Apesar das polêmicas e mistérios, o legado de Maria de Araújo, na visão da autora, é extremamente positivo:

"Ela é essa mulher que, para mim, tem um interesse muito grande em construir uma trajetória de santidade e faz isso com as ferramentas que pode. Diante também da figura social que ela é, uma mulher negra, pobre e que não tem lugar nessa sociedade. Isso resultou em um movimento muito interessante, que fez com que a Maria de Araújo fosse reconhecida como cidadã cearense. Hoje, o aniversário dela é feriado municipal", conclui.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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