O Banqueiro da Resistência: Os irmãos que criaram fraude para combater o nazismo
Aventuras Na História
Recentemente assisti pela segunda vez ao filme 'O Banqueiro da Resistência' (2018), que, embora esteja fora do “circuito mainstream”, trago a este texto não só pela trama de guerra, mas também pela paixão que sinto pelo cinema, tanto quanto pela História.
Ambientada nos Países Baixos, a obra tem como pano de fundo o financiamento da Resistência Holandesa durante a Segunda Guerra Mundial. Antes de prosseguir, peço licença para esclarecer uma dúvida comum: a diferença entre “Países Baixos” e “Holanda”.
No Brasil, por razões históricas, o Reino dos Países Baixos é popularmente conhecido como Holanda, que, na verdade, é uma das regiões dos Países Baixos — uma das mais ricas e onde se situa a capital, Amsterdã. Nesta coluna, para facilitar, usaremos “Holanda” de forma genérica.
Dúvida esclarecida, pergunto ao leitor: já parou para pensar como funciona o financiamento de uma guerra? Quando se trata de Estados-nação, esta é uma questão de finanças públicas “normais”, ou seja, o conflito é financiado pelo orçamento da União, pelos “títulos de guerra” e por aí vai, citando qualquer recurso que o governo dispõe enquanto controlador ou regulador da economia.
Mas, em um país ocupado, como funciona o financiamento, por exemplo, da resistência organizada contra o inimigo? Esta é justamente a trama de 'O Banqueiro da Resistência', dirigido por Joram Lürsen.
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A trama
No enredo, dois irmãos banqueiros, Walraven “Wally” van Hall e Gijsbert “Gijs” van Hall, influentes na sociedade holandesa durante a ocupação alemã (1940-1945), se veem face a face com um dilema inesperado: ajudar ou não o próprio país e seu povo nesta hora mais escura.
Apesar de se declarar neutra, vale lembrar que a Holanda acabou invadida pela Alemanha em sua marcha para tomar a França. No primeiro ano da ocupação, os holandeses não sofreram tanto, tendo em vista a abordagem alemã sobre o país popularmente conhecida como “luva de veludo”, uma ocupação relativamente “leve”.
Contudo, a partir de meados de 1941, quando a Alemanha começou a precisar de mais recursos depois de invadir a União Soviética, a situação ficou complicada. E é neste contexto que entram em cena os irmãos van Hall.
Com os alemães intensificando a repressão, uma das primeiras medidas que os nazistas colocaram em prática foi a suspensão do “Fundo dos Marinheiros”, um fundo de pensão que mantinha as famílias dos membros da Marinha Mercante em exílio desde o início da ocupação alemã.
Após ter sido abordado por um membro da resistência, Wally (ele próprio um antigo oficial da Marinha Mercante) concordou em arrecadar dinheiro junto a banqueiros simpatizantes para auxiliar os familiares dos marinheiros.
Logo, apresentou seu plano a Gijs de arrecadar verba junto aos colegas e indivíduos abastados, não apenas para financiar as famílias dos exilados, mas toda a atividade de resistência, incluindo judeus que se escondiam dos alemães. Gijs, porém, levantou uma questão: se eles iriam agir como um banco informal, pegando dinheiro emprestado em nome do governo no exílio — esperando que este pagasse quando a guerra acabasse —, como fariam a contabilidade disso tudo? Afinal, o governo iria exigir provas de que aquilo não era um esquema ou, pior, de que o dinheiro não iria para os alemães.
A solução de Wally era simples, mas engenhosa. Usariam papéis de ações de países que já não mais existiam — como o Império Russo — e marcariam a quantidade, seguida de um “X” e do número da ação no livro-caixa. Assim saberiam que determinado indivíduo contribuiu com, por exemplo, “5X”, ou seja, 5.000 florins (à moeda da época). Caso os registros fossem pegos, os alemães não entenderiam os números e não haveria evidências contra eles.
Incialmente hesitante, Gijs acaba cedendo e ajudando Wally com seu plano. Além de perceber que poderia contribuir em minar o esforço de guerra alemão, o fato de ser o irmão mais velho pesou na decisão.
Os irmãos, então, montam uma vasta rede que se estende por todo o país, com ramificações até mesmo dentro do De Nederlandsche Bank, o Banco Central Holandês, comandado na época pelo simpatizante nazista Meinoud Rost van Tonningen.
No filme, ele é mostrado como o grande antagonista de Wally, que, vendo sua incapacidade de lidar com as atividades “subversivas” da resistência — sem saber que os irmãos estavam por trás de tudo —, recorre à SD, o infame serviço de espionagem da SS.
Além das telas!
Para além do mundo das finanças, 'O Banqueiro da Resistência' é uma radiografia social de uma nação em tempos de guerra. Amores, os sentimentos entre o dever moral e a obrigação de proteger a família, além de revelar como uma guerra afeta a todos, sem distinção de classe, são temas representados no filme.
É interessante observar como, ainda que sejam membros da elite holandesa, no decorrer da dramaturgia fica evidente a queda do padrão de vida dos irmãos, e como a grande fome de 1944-1945 na Holanda também os atingiu.
Para terminar, mesmo que tenha evitado spoilers durante o texto, um fato precisa ser contado: o dinheiro que pegaram emprestado — algo que ultrapassa (e muito) 1 bilhão de euros em valores atuais — foi pago? Sim! O filme, inclusive, é narrado por Gijs que, ao mesmo tempo em que explica para os ministros holandeses, recém-retornados a uma Holanda libertada, como fizeram tudo isso, também está nos contando a História.
Com um enredo bem construído, este drama de guerra merece ser assistido. Disponível na Netflix, ele retrata como uma sociedade é transformada pela guerra, algo que antes era distante, mas que, com esse “mundo em reconcerto” em que vivemos, se tornou a nossa realidade. Um brinde aos irmãos van Hall! E à História.
*Ricardo Lobato é sociólogo e mestre em economia, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro e consultor- Chefe de Política e Estratégia da Equilibrium – Consultoria, Assessoria E Pesquisa @Equilibrium_cap