Parte da nova geração não conhece Juscelino Kubitschek, o presidente da modernização do Brasil
Aventuras Na História
Belo Horizonte, início de 1951. Recém-chegado ao Palácio da Liberdade, o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek ,encontrou no salão de honra do palácio, então sede do governo mineiro, o secretário da Agricultura, Tristão da Cunha.
Após cumprimenta-lo, perguntou: “Então, como vão as coisas?” Solene, Cunha respondeu: “Governador, trago aqui um decreto para o senhor assinar. É a autorização para a compra de 40 mil enxadas.” Juscelino colocou os dois braços no ombro do auxiliar e disse: “Olha meu caro, o senhor não me leve a mal, mas enxada no meu governo, não. Traga me um decreto propondo a compra de 40 mil tratores que eu assinarei.”
E soltou uma sonora gargalhada. A passagem, descrita no livro ‘JK – O Artista do Impossível’, escrito por Claudio Bojunga, ilustra a personalidade e o estilo arrojado de Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK.
Nascido em 12 de setembro de 1902, em Diamantina, terra de Xica da Silva e das vesperatas (tradicionais apresentações de bandas de música pelas ruas da cidade), o pé de valsa Nonô, como era conhecido em sua terra natal, nasceu e cresceu em uma família pobre, filho de uma professora primária viúva, e foi seminarista, telegrafista, médico urologista, deputado federal, prefeito de Belo Horizonte (1940 1945), governador de Minas (1951 1955), senador e presidente da República (1956 1961).
Na presidência, JK tirou do papel uma letra morta que se arrastava desde o Império e, em menos de quatro anos, construiu, no meio do nada, no coração do Cerrado, sua maior obra: Brasília, a nova capital do Brasil.
O centro do país
Inaugurada em 21 de abril de 1960, a cidade que saiu das pranchetas modernistas de Oscar Niemeyer e Lucio Costa foi entregue na data prevista graças ao esforço de milhares de trabalhadores convocados para a empreitada pelo próprio presidente, que vistoriava tudo pessoalmente e se misturava aos operários nos canteiros de obras, dividindo seu tempo entre o Palácio do Catete, no Rio, e o Planalto Central.
O resultado foi um centro urbano totalmente diferente do que se conhecia até então, mesmo nas cidades planejadas em outros lugares do mundo. O cosmonauta soviético Iuri Gagarin, que em 1961 completou uma órbita completa em volta da Terra na primeira viagem espacial tripulada, comentou ao visitar Brasília pela primeira vez: “a ideia que tenho, presidente, é a deque estou desembarcando em um planeta diferente, que não a Terra”, registrou o orgulhoso criador do novo centro do poder federal, em suas memórias.
Brasília foi a joia da coroa de um governo que, de acordo com os especialistas foi o grande responsável pela construção do Brasil moderno, que colocava no passado uma vocação mera mente agrícola excessivamente dependente da monocultura e adentrava na era industrial, construindo e renovando toda a infraestrutura nacional.
Os “anos JK”, como ficaram conhecidos, foram de abertura de estradas, construção de usinas hidrelétricas e requalificação de toda a infraestrutura nacional. Eram os “50 anos em5”, como pregava o candidato em sua campanha eleitoral. Uma inquietude que trazia desde a prefeitura de Belo Horizonte, onde, por contado dinamismo e as obras que eram realizadas aos montes na capital, ganhou o apelido de “prefeito furacão”.
O que no começo era um apelido pejorativo, acabou virando uma marca do dinâmico administrador. Não à toa, o escritor Guimarães Rosa o classificaria posteriormente como “o poeta da obra pública”.
Slogan virou lema
O objetivo na Presidência da República era promover o desenvolvimento e a interiorização do país. Para se ter uma ideia, entre 1955 e 1961 foram construídos mais de 13 mil quilômetros de rodovias, entre elas a Belém Brasília, a Rio Belo Horizonte e a Fernão Dias, e pavimentados 7,2 mil quilômetros. Apenas dos dois primeiros anos de governo, a rede pavimentada expandiu se em 300%.
A reboque das mudanças no setor de transportes surgiu a indústria automobilística nacional, um dos maiores símbolos da abertura e transformação econômica daquela época. O Plano de Metas de JK contemplava ainda a construção de usinas hidrelétricas, como Furnas e Três Marias, para suprir a demanda energética de um país cada vez mais urbano, com uma população crescente e a economia cada vez mais diversificada.
Tudo isso era orquestrado por um homem cuja marca era o bom humor, o sorriso fácil, a capacidade de articulação política e a elegância que conquistava a todos. O jeito afável era reconhecido em todos os setores da sociedade. O então deputado federal mineiro San Tiago Dantas registrou na época: “quem quiser ser inimigo de Juscelino deve ficara pelo menos seis léguas de distância. O homem é uma pilha de simpatia humana”.
Como observou o escritor Nelson Rodrigues: “Juscelino trouxe a gargalhada para a Presidência”, enquanto outros presidentes tinham sempre “a rigidez de quem ouve o Hino Nacional, cada um se com portando como se fosse estátua de si mesmo”.
No dia a dia, a população demonstrava a mesma satisfação com as mudanças públicas estruturais promovidas na mesma época em que pairava no ar um clima de otimismo em outras áreas, como a cultura e os esportes.
Aspectos culturais
Na cultura, a bossa nova elevava a música brasileira internamente e em outros países, enquanto nos esportes a Seleção Brasileira conquistava sua primeira Copa do Mundo, em 1958, na Suécia. Juscelino era, também, uma pessoa de sorte por navegar com o seu projeto desenvolvimentista em um cenário de ventos tão favoráveis e que elevavam a autoestima do brasileiro.
Aquele foi um momento de grandes conquistas para o país, em todas as frentes. Ele era visto pela população como um sujeito pé quente, uma pessoa de muita sorte. Era alguém que estava modernizando o Brasil, criando oportunidades para as pessoas e gerando empregos”, explica o cientista social Fábio Chateaubriand Borba, diretor de Rede e Novos Negócios da Fundação Padre Anchieta e estudioso da obra de JK.
O cientista político Rudá Ricci o compara a outro fenômeno de popularidade, o presidente dos Estados UnidosJohn F. Kennedy. Até as siglas com as iniciais do nome são semelhantes. “Preservadas as proporções, JK adotou um estilo que se aproximava do de JFK. Politicamente não era tão avançado, mas a ousadia estava na forma como marcava suas administrações, com obras que criavam identidade, abriam o país para o mundo e descortinavam o que poderia ser um Brasil moderno”, diz Ricci.
Trajetória de JK
Diante de uma biografia tão rica e densa, no campo pessoal e profissional, ao longo das décadas historiadores, jornalistas e pesquisadores das mais diversas áreas se debruçaram sobre a trajetória do menino que pode ser considerado uma síntese do brasileiro médio: origem humilde, corajoso, que desafiou o que parecia impossível e batalhou muito para vencer na vida, sem perder a alegria e o bom humor.
Os nascidos em Diamantina têm todas as virtudes do mineiro, uma por uma, mas não os defeitos, já que descobriram uma coisa chama da alegria de viver. E JK seria o protótipo do diamantinense”, escreveu o conterrâneo e escritor Pedro Nava, colega de JK na faculdade de medicina. “Precisava aparecer alguém que fizesse a biografia dele misturando sua vida às aventuras do diamante, à alegria de Diamantina, às serestas, às igrejas, às casas velhas e à alma meio louca e meio menina de Diamantina”.
Uma nova linguagem
O documentarista Fábio Borba topou o desafio preconizado por Nava. Em novembro, será lançado pela TV Cultura o documentário ‘JK, o Reinventor do Brasil’, minissérie em quatro capítulos, de 50 minutos cada um, que conta a trajetória de Juscelino desde a infância pobre até o acidente trágico que tirou a sua vida em uma colisão na Via Dutra, em 1976, ocorrido em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas.
“Falar sobre JK é contar a História do Brasil. Ele foi o Pelé dos presidentes, aquele que todos queriam ser”, diz Borba, ao justificar a grandiosidade do projeto, que inclui uma fotobiografia do ex-presidente que também já está concluída e prevista para ser lançada até o fim do ano.
Foram mais de dois anos de pesquisa em cerca de 50 mil fotos, livros, acervos públicos e particulares, museus e 30 entrevistas, incluindo pessoas próximas ao ex-presidente ainda vivas.
As gravações ocorreram em cidades como Diamantina, Brasília, Belo Horizonte e Passa Quatro, no Sul de Minas, onde Juscelino atuou como médico durante a Revolução de 1932. Ali ele conheceu Benedito Valadares, prefeito de Pará de Minas e futuro interventor de Minas nomeado por Getúlio Vargas. Foi Valadares quem lançou o jovem médico na administração pública e na política ao nomeá-lo chefe de gabinete do Palácio da Liberdade e depois prefeito da capital mineira.
“JK já foi muito bem falado, muito biografado e muito especulado, mas nunca em uma linguagem intermidiática que prenda a atenção do público em geral e o nosso público foco, que são os mais novos e as novas gerações que ainda não o conhecem”, diz Borba. Esse desconhecimento é amparado em pesquisas, como uma sondagem feita pelo Datafolha, em 2021, que mostrou que apenas 4% dos entrevistados sabiam quem era Juscelino.
Apenas 4% da população sabe quem ele é. E estamos falando do político que construiu Brasília e modernizou o Brasil”, diz Borba. Mesmo em Minas Gerais, onde nasceu e pavimentou sua carreira política, a imagem do mineiro ilustre parece estar cada vez mais relegada ao desconhecimento ou mesmo esquecimento do conterrâneo que reinventou o Brasil. “Muitas pessoas que moram em Diamantina acreditam que JK foi o prefeito da cidade. Ele nunca foi prefeito de Diamantina e começou sua carreira em Belo Horizonte”, diz o documentarista.
Mesma opinião
A opinião é compartilhada por Rudá Ricci, pesquisador e autor de livros sobre a política e a administração pública mineiras. “JK sempre foi uma figura emblemática em Minas, mas parece que essa imagem ‘evaporou’ nos últimos tempos. O seu lado boêmio passou a ser mais lembrado e citado do que o seu papel para a gestão pública”, diz Ricci. “Se em Minas é assim, imagina o que ocorre no resto do país em termos de desconhecimento sobre a figura de JK. Infelizmente, per demos o conceito de referências em planejamento estatal, inclusive orçamentário”, completa Ricci.
O documentário joga luz em diversas passagens da vida pessoal e política de Juscelino. Em especial, os anos de vida após a cassação do mandato de senador e os direitos políticos, a mando do regime militar.
Após deixar a Presidência e transferir a faixa presidencial para Jânio Quadros, em 1961, JK já começava a preparar o seu retorno ao Palácio da Alvorada, em 1965. O plano inicial do “JK 65”, além da continuidade do Plano de Metas, era dar atenção especial à agricultura.
A renúncia de Jânio e a crise institucional que se seguiu, porém, mudou os rumos da história e, junto com outros políticos, o ex-presidente foi perseguido e amargou anos de exílio.
Por que não deu certo?
Um dos entrevistados para o documentário, que compartilhava o círculo íntimo do poder militar, reconhece que a ditadura errou ao perseguir e impor tanto sofrimento ao ex-presidente, que nunca mais conseguiu retomar seu sonho de voltar a governar o país ou mesmo exercer qualquer outro cargo público.
Na volta, no retiro de sua fazenda em Luziânia, próximo a Brasília, o diamantinense ilustre que transformou o Brasil não escondia a tristeza frente à situação em que foi relegado. A um interlocutor que o visitou na “fazendinha”, como era chamada a propriedade, expôs a amargura ao suspirar: “depois de tudo que eu fiz, hoje não passo de um construtor de caixa d’água”.
Outro capítulo abordado são as circunstâncias que envolveram a morte de Juscelino, no trágico acidente ocorrido na Via Dutra, no dia 22 de agosto de 1976. As circunstâncias do acidente entre o carro que transportava o ex-presidente e o ônibus da Viação Cometa nunca foram totalmente esclarecidas.
Também não se sabe o porquê, na última hora, de ter convocado o seu fiel motorista, Geraldo Ribeiro, para fazer o trajeto de carro, já que tinha uma passagem de avião no bolso que o levaria, naquele dia, de volta a Brasília.
Uma das hipóteses é que Juscelino teria um encontro reservado com os militares no meio do caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo, para discutir um possível retorno consentido à vida pública e o processo de reabertura política ventilado pelas alas mais progressistas da caserna.
A outra é que estava indo ao Rio para encontrar sua amante, Lúcia Pedroso. O fato é que, dias antes de completar 74 anos, morria o homem que, nas palavras do escritor Carlos Heitor Cony, seria definido como o contemporâneo do futuro.