Shindo Renmei: A extremista organização que matou japoneses pós-Segunda Guerra
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No dia 2 de setembro de 1945, o Japão se rendeu aos Estados Unidos, colocando um ponto final na Segunda Guerra Mundial. Aquela altura, o país havia sido devastado há pouco pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki. Não restava outra alternativa ao Ministro das Relações Exteriores, Shigemitsu Mamoru, que assinou o termo em nome do imperador Hirohito.
Apesar do fim do conflito, um grupo extremista de imigrantes japoneses passou a espalhar a 'notícia' de que o Japão não havia perdido a Guerra, mas sim vencido. Segundo eles, a rendição do imperador era só um boato para desestabilizar a moral dos japoneses.
As notícias falsas começaram a circular graças à Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos, em tradução literal), uma organização japonesa secreta e ultranacionalista fundada em Marília, no interior de São Paulo. Além disso, o grupo também passou a perseguir e matar os isseis e nipo-brasileiros que acreditavam nas notícias da derrota japonesa.
Seis meses após o fim da Segunda Guerra, na cidade paulista de Bastos, no interior do estado, o imigrante japonês Ikuta Mizobe, de 53 anos, foi assassinado a tiros por um "coração sujo" (como os extremistas eram chamados) no quintal de sua própria casa. Tudo isso em prol do amor à pátria, conforme o grupo alegava.
Durante o período de 1946 e 1947, a Shindo Renmei fez ao menos 23 vítimas fatais e deixou cerca de 147 feridos. Todos eles por serem contrários à verdade.
Perseguição contra imigrantes
Desde o período pré-guerra, na década de 1930, até os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, o Brasil manteve neutralidade política, realizando diversos acordos econômicos com as duas principais potências econômicas do conflito: Estados Unidos e Alemanha.
Liderado por Getúlio Vargas, nosso país só tomou uma posição em agosto de 1942, quando passou a apoiar os Aliados: EUA, Reino Unido, França, União Soviética e China. E, por consequência, se tornou inimigo das nações do Eixo: Alemanha, Itália e Japão.
Aquela altura, mais de 200 mil japoneses e seus descendentes vivam no Brasil, principalmente em estados como Paraná, Pará e São Paulo — neste último, a comunidade japonesa se fixou em cidades do centro-oeste paulista, como Bastos, Tupã, Marília e Pompeia.
Os imigrantes, inclusive, representavam grande parcela da população de algumas comunidades, como o caso do município de Bastos, onde dos nove mil habitantes, sete mil eram japoneses.
A situação do grupo passou a piorar com o fim da neutralidade brasileira. Afinal, por aqui, eles passaram a serem proibidos de coisas básicas do cotidiano: troca de cartas, falar o próprio idioma, cantar, ouvir rádio, ler jornal japonês…
"Não vinham cartas (do Japão), né? Não pode ouvir rádio. Jornal japonês era proibido. A gente ficava no escuro, não sabia nada do que estava acontecendo", conta Aiko Higuchi, filha de Mizobe, em entrevista à BBC.
Não pode falar japonês na rua. Se fala japonês, entra na cadeia", explica.
Diante desse contexto, inúmeros grupos se formaram dentro nas comunidades nipônicas com o objetivo de manter a colônia unida. Entre eles a Shindo Renmei, fundada pelo ex-oficial do Exército do Japão, Junji Kikawa.
Surge um grupo extremista
Conforme aponta matéria da BBC, um dos objetivos da Shindo Renmei era manter a chamada "Yamato Damashii" — o espírito japonês; caracterizado pelo forte nacionalismo de sua cultura.
Até hoje existe um ponto de debate sobre a data de fundação da organização, com muitos apontando que ela surgiu ainda em 1942, diante da repressão do Estado contra imigrantes do Eixo. Outra versão aponta que o grupo foi formado em algum momento entre 1944 e 1945, recebendo o nome de Kodôsha (Movimento Unificador).
Mas o fato é que a Shindo Renmei passou a assumir um caráter mais radical a partir da rendição do Japão; quando surgiram as ameaças de morte e assassinato contra os imigrantes que compartilhavam a verdade.
"Muitos japoneses se aproveitaram do caos vivenciado no interior da comunidade, a partir das informações desencontradas sobre o desfecho da guerra, para obter vantagens sobre os próprios conterrâneos", explica Rogério Akiti Dezem, professor da Universidade de Osaka, no Japão, à BBC
Outro ponto importante é que as autoridades brasileiras só descobriram a existência do grupo quando os atos extremistas começaram. Para se ter noção da dimensão da Shindo Renmei, eles já contavam com mais de 120 mil membros ou simpatizantes, que estavam espalhados em mais de 60 filiais pelo interior paulista. A parcela representava cerca de 60% de todos os japoneses que viviam no Brasil.
"A notícia da derrota do Japão e a repressão vivida pelos japoneses no período geraram uma grande confusão no seio da colônia. Para a maioria dos imigrantes, a Shindo se tornou uma espécie de 'luz no fim do túnel'", contextualiza Dezem.
Crimes e prisões
A BBC aponta que a Shindo Renmei tinha como alvo, principalmente, os membros mais notáveis da comunidade japonesa; aqueles que eram mais integrados com os brasileiros e que também tinham mais acesso às verdadeiras informações.
Um desses casos é o de Ikuta Mizobe, que na época de sua morte trabalhava como geente de uma cooperativa de agricultores em Bastos. "As pessoas vinham perguntar sobre a guerra, e ele falava o que sabia: que o Japão tenha perdido", aponta sua filha.
"Meu pai recebeu carta com duas palavras: pessoa e coração, cortado com uma faca. Minha mãe queimou a carta. Desde aquele dia eu não consegui mais dormir, toda noite ia pra cama pensando", diz ela.
Mizobe foi assassinado em 1946, quando Aiko já vivia em Pompeia junto de seu marido e seu filho recém-nascido. Na noite de 6 março, Ikuta havia saído para fechar o portão de sua casa e passou para ir até o banheiro na parte de fora do imóvel.
Dois homens estavam escondidos. Quando ele estava fechando a porta, eles atiraram. Minha mãe ouviu os tiros e saiu, e viu dois homens fugindo no cavalo. Mamãe falou depois: 'nunca imaginou que tinha tanto sangue no corpo'. Ela limpou meio balde de sangue", conta.
O grupo extremista só chegou ao fim após a prisão de alguns de seus principais dirigentes, quando ocorreu uma batida na sede central de Jabaquara, bairro da capital paulista. Registros do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) apontam que 31.380 japoneses foram identificados e fichados por suspeita de ligação com a organização.
Centenas deles foram condenados a penas entre 1 e 30 anos de prisão, incluindo 14 jovens sentenciados por homicídio e os dois homens que mataram o pai de Aiko. Já em 1946, o então presidente Eurico Gaspar Dutra expulsou 81 imigrantes japoneses por terrorismo.
Apesar disso, aponta Dezem, "a pena nunca ocorreu efetivamente, e boa parte dos japoneses foi colocada em liberdade". Cerca de uma década depois, todos os presos foram libertados após um decreto emitido por Juscelino Kubitschek.
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