"Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo": A história por trás da icônica frase
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"Senhoras e senhores constituintes. Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar...".
Foram com essas linhas que a partir das 15h50, do dia 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães, então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, apresentou a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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O discurso de Ulysses se tornou um dos mais emblemáticos da história de nosso país. Um dos principais opositores à ditadura militar, as falas de Guimarães são um marco da nova ordem democrática — surrada e atormentada durante os 21 anos do Golpe.
"Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa", prosseguiu.
No discurso, Ulysses ainda destacou a importância da Constituição ser inclusiva. "Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora".
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo", prosseguiu.
Os anos de chumbo
Entre os dias 31 de maio e 1º de abril de 1964, um Golpe Militar depôs o presidente João Goulart. Sob a tutela da ditadura, o Brasil sofreu com a censura à imprensa, restrição aos direitos políticos e perseguição policial aos opositores do regime estabelecidos através dos Atos Institucionais.
A ditadura restringiu as garantias individuais e sociais das pessoas, além de torturar e executar opositores. Os Anos de Chumbo perduraram até 1985, quando o país passou a viver sua redemocratização.
Em 1º de fevereiro de 1987, foi instalada no Congresso Nacional, em Brasília, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987, que tinha como finalidade elaborar uma Constituição democrática para o país.
A Assembleia de 1987 havia sido um compromisso de campanha de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil a ser eleito, embora de maneira não direta, após o Golpe de 64. Tancredo, porém, veio a falecer antes de assumir o cargo, que ficou sob a incumbência de José Sarney — que se responsabilizou em cumprir a promessa.
Um ano e meio depois, após diversas discussões sobre, o texto final da nova Constituição foi votado e aprovado. "Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!", exaltou Ulysses.
Conforme aponta o site da Câmara Legislativa, nesta data o país viveu uma situação inusitada: até o início do discurso de Guimarães, às 15h50, o Estado e a sociedade foram regidos por uma constituição. Mas daquele momento em diante, por outra — que garantia, entre outras coisas, direito à licença-paternidade e a proibição da polícia em realizar operações de busca e apreensão sem autorização judicial.
Seguindo seu discurso, Ulysses Guimarães reconhece que a nova Constituição não é "perfeita", mas alerta: "A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca".
"Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra", prossegue.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo", branda, sob aplausos.
"Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina… Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna", continuou.
Participação popular
Conforme repercute a BBC, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte ainda exaltou a participação de brasileiros na elaboração da Carta Magna: "O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final".
"Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar."
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência e a inépcia", continua.
Em vigor desde 1988, a Constituição brasileira é composta por 250 artigos, o que a torna a segunda maior do mundo, só perdendo para a Índia, relata o Nexo. O documento concede direitos inalienáveis à população, algo que jamais poderia ser pensado durante a ditadura: como, por exemplo, a liberdade plena de imprensa e a união civil homossexual.
Constituição: mudança e cidadania
Ulysses Guimarães destaca a importância da Constituição para "ordenar o avanço no campo das necessidades sociais" e que o povo brasileiro passou a ter iniciativa sobre elas: "Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento".
Ele ainda alerta que os políticos e legisladores deveram cumprir com suas obrigações e não se deixem levar pela corrupção, o que pode levar o país de volta ao autoritarismo. "A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador".
"A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam", prossegue.
"Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. (...) Mas será útil, pioneira, desbravadora, será a luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados."
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado", destaca.
Já na reta final de seu discurso, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte destaca a Magna Carta como símbolo de mudança: "O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram", disse sob aplausos acalorados.
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: 'A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar'. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil", encerrou.
Ouça abaixo, na íntegra, ao discurso completo de Ulysses Guimarães. Uma versão resumida também pode ser consultada no site da Câmara Legislativa.