As fotos que criaram uma guerra de propaganda entre Brasil e EUA
Mega Curioso
Nesse post, nós vamos contar o interessante caso da disputa de narrativas entre uma revista norte-americana e outra brasileira, no contexto da Guerra Fria.
Para começar, é importante entender que a Life era a revista semanal mais lida dos Estados Unidos, no início dos anos 1960, e que, naquela época, ela se alinhou ao governo do país na luta contra o comunismo. Afinal, havia pouco tempo que o regime tinha chegado à America, com a Revolução Cubana, e os Estados Unidos temiam que outros países latinos seguissem esse mesmo caminho. Esse temor, é claro, incluía o Brasil.
Em 1961, o então presidente dos EUA, John Kennedy, anunciou o programa "Aliança para o Progresso", que visava aproximar seu país do resto do continente. Para isso, ele daria ajuda financeira aos governos que permanecessem alinhados aos EUA e longe do comunismo de Cuba. Porém, mais do que uma disputa financeira e política, essa também era uma guerra de informação e de propaganda. É aí que entra a revista Life.
Imagem: oldlifemagazine.com
O retrato da pobreza no Rio de Janeiro
Para fazer sua parte — e denunciar a ameaça do comunismo na América Latina — a revista Life escalou seu melhor fotógrafo, Gordon Parks, para vir ao Rio de Janeiro. A missão dele era tirar fotos de um pai cuidando de sua numerosa família, vivendo em meio à pobreza. O objetivo era dizer que esse tipo de homem poderia ser cooptado pelo comunismo.
Parks era um homem negro, conhecido por suas fotos expressivas sobre o racismo e injustiças sociais. Quando ele chegou no Rio de Janeiro, acabou não focando tanto no objetivo de seus chefes, mas sim na história e na personalidade de um garoto: Flávio, de 12 anos, que era quem cuidava dos irmãos em um barraco na favela da Catacumba.
É óbvio que os editores da revista — especialmente o editor-chefe, próximo da Casa Branca — deram um jeito de contar a história como queriam. Eles organizaram as fotos de Parks em um ensaio de 10 páginas, intitulado "Miséria, inimiga da liberdade". A reportagem ganhou até uma versão em espanhol, para a edição da revista distribuída na América Latina.
O texto que acompanhava as fotos não era nada sutil: falava que a pobreza daquela família poderia ser encontrada "em qualquer lugar da América Latina" e que pessoas naquela situação eram suscetíveis à exploração política do regime castrista e comunista. Esse contexto, dizia a revista, explicitava a importância do programa "Aliança para o Progresso", de Kennedy.
Imagem: Unicamp
Os americanos salvadores
As fotos eram, realmente, impressionantes. Mostravam o tamanho da favela, crianças chorando sem cuidado, o menino Flávio tendo que amparar os irmãos... Até que, nas últimas páginas, ele aparece de cama, com uma legenda explicando que ele sofre de asma e desnutrição.
Logo, milhares de leitores da revista Life enviaram cartas e até doações para "salvar Flávio". Ele foi trazido para os Estados Unidos e tratado no melhor hospital de asma do país, sem custo. A foto — colorida — de Flávio recebendo cuidados foram a capa de uma edição seguinte da Life. A mensagem era clara: os EUA podiam ajudar a pobre América Latina.
O que eles não contavam é que os brasileiros — principalmente os cariocas — não iam gostar nada de serem retratados dessa forma. É importante lembrar que o Rio de Janeiro tinha recém perdido o posto de capital do país para Brasília e a elite local, assim como a imprensa, estava refletindo sobre o futuro da cidade.
Todos sabiam que a desigualdade existia, mas retratar esse aspecto como realidade geral e explorar nossa pobreza por razões políticas foram coisas que ofenderam muita gente, à época.
Imagem: Unicamp
A resposta da revista brasileira
Uma revista se sentiu especialmente ofendida pela reportagem da Life: O Cruzeiro, que era quase o equivalente da publicação gringa aqui no Brasil — com reportagens semanais sobre o cotidiano do país. O que eles fizeram? Mandaram um fotógrafo, Henri Ballot, para mostrar que também existia pobreza em Nova York.
Ballot encontrou uma família de imigrantes porto-riquenhos, os Gonzalez, que viviam numa área pobre de Manhattan. Ele recriou exatamente as mesmas poses e ângulos de Gordon Parks, porém com a família nos EUA. O texto d'O Cruzeiro para ilustrar as imagens foi certeiro na comparação: "Como se a miséria fosse exclusivamente nossa. Não é".
As 10 páginas de cada revista — publicadas com quatro meses de diferença — são quase as mesmas: uma foto de duas páginas de uma menina com o pai; três fotos verticais com o bairro pobre e crianças chorando; uma família dormindo amontada; três fotos de crianças se virando sozinhas... E a última página impactante, com o menino de cama.
A ideia era zombar do espetáculo que os americanos fizeram, levando Flávio para lá, sendo que há gente precisando dos mesmos cuidados ali mesmo, nos EUA. "Seria o caso, talvez, de trazê-lo ao Brasil", dizia a legenda. Que invertida!
Imagem: Unicamp
Uma guerra de propaganda
Depois da reportagem d'O Cruzeiro, a polêmica só cresceu: a revista Time, da mesma editora da Life, disse que as fotos nos EUA tinham sido fabricadas, enquanto O Cruzeiro fez acusações parecidas sobre as imagens do Rio.
A questão é que a realidade — ou a pobreza e suas causas... — não importava para nenhuma das duas revistas, nem para os países. O que os dois lados queriam mesmo era vender revistas e provar seu ponto de vista — a Life, especialmente, queria apoiar Kennedy. No fim das contas, a Aliança para o Progresso foi considerada um fracasso e os EUA acabaram sendo um pouco mais "agressivos" para evitar o comunismo na América Latina, apoiando ditaduras de direita.
Mas isso é assunto para outros posts.