Vipeholm: os experimentos antiéticos que confirmaram causa da cárie
Mega Curioso
Conforme os dados fornecidos pelo National Institute of Dental and Craniofacial Research, adultos entre 20 a 64 anos têm uma média de 3,28 dentes permanentes com cáries, além de 13,65 superfícies cariadas. O Paradigm Dental mencionou que, em 2016, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) descobriu que mais de 90% dos adultos norte-americanos tiveram uma cárie, dos quais 1 em cada 4 não trataram. Globalmente, o World Health Organization (WHO) estima que 2 bilhões de pessoas sofrem com o problema em dentes permanentes, das quais 520 milhões de crianças possuem cáries em dentes de leite.
A humanidade sofre com essa infecção bacteriana que destrói os tecidos duros dos dentes há milhões de anos, com fósseis da espécie dos primatas Australopitecos revelando algumas das primeiras cáries, há 1,1 milhão e 4,4 milhões de anos. Foram escavados crânios paleolíticos e mesolíticos que também indicaram sinais do problema.
(Fonte: Durham DDS/Reprodução)
Antes do surgimento da cana-de-açúcar no século XI, que disparou o número de cáries documentadas, os principais fatores associados ao problema foram o consumo desenfreado de alimentos à base de plantas contendo carboidratos, e o cultivo de arroz.
Foi só entre 7000 a.C. e 5500 a.C., no Paquistão, que foram desenvolvidos os primeiros tratamentos para cárie, com um texto assírico da dinastia sargônida revelando que esse dano dentário era curado através da extração.
Antigos egípcios, gregos e romanos usaram vários tipos de tratamentos, como amuletos e remédios de ervas, que não foram, exatamente, efetivos no combate ao problema. No entanto, eles não usaram ninguém como cobaia para isso, muito diferente do que aconteceu na modernidade.
O debate do século
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
A chegada do século XVIII se provou um momento determinante no avanço e tratamento de cáries, com o médico francês Pierre Fauchard, considerado o "pai da odontologia moderna", uma das primeiras pessoas a citar o açúcar como possível causa das cáries, visto que a sociedade já desfrutava de comidas doces desde a Idade Média.
De acordo com um estudo finlandês de 2014, referido pela University General Dentist, consumir uma ou duas bebidas com alto teor de açúcar, como refrigerantes, está associado a um risco de 31% na formação de cáries.
A cárie assombra a História como um problema que demorou para ser combatido, visto que, até a década de 1970, sua causa ainda era objeto de debate entre os especialistas, que não acreditavam que o tipo de dieta consumida pelas pessoas incitava ou agravava a condição. Portanto, era difícil chegar em um consenso para desenvolver uma estratégia preventiva sobre sua causa.
(Fonte: NYAM Center for History/Reprodução)
Na década de 1930, a Suécia sofria com crianças de 3 anos carregando cáries em 83% de seus dentes, em um país em que a assistência odontológica era muito precária, com tratamentos quase inexistentes ou muito rudimentares, em que a extração ainda era visto como a única solução.
O problema atingiu tal grau que os militares chegaram a exigir que os homens tivessem pelo menos 6 dentes opostos intactos para poder servir na Primeira e Segunda Guerra Mundial.
Percebendo que estavam confrontando um problema epidêmico, o governo sueco criou o primeiro Serviço Nacional de Odontologia, em 1945. Para tentar desvendar de onde exatamente a cárie vinha — visto que o racionamento de açúcar feito na guerra havia diminuído significantemente o surgimento das cáries —, em 1945, tendo a indústria açucareira como principal patrocinadora, o Conselho Médico encomendou um estudo para entender de uma vez por todas sua origem, dando início aos Experimentos Vipeholm.
Deixados para trás
(Fonte: CNN/Reprodução)
O governo escolheu o Hospital Vipeholm, na cidade de Lund, a sudoeste da Suécia, para dar início ao programa que “salvaria” o país daquele problema, e, para isso, percorrer o caminho de usar humanos como cobaias, principalmente os indefesos, foi essencial para os cientistas.
Em 1935, o Vipeholm havia sido transformado em um lar para pessoas com graves deficiências em desenvolvimento intelectual, com adultos e crianças com QI abaixo de 25, expectativa de vida abaixo da média, e idades entre 15 e 70 anos.
Os cientistas começaram examinando os dentes dos pacientes, o que revelou que estavam em melhor forma do que o resto da população sueca, provavelmente porque não tinham acesso à mesma quantidade de açúcar.
Na primeira fase, as cobaias receberam metade da quantidade de açúcar presente na dieta da maioria da sociedade, além de suplementos vitamínicos e flúor. A via de adição do produto acontecia por pães durante as refeições, e em bebidas adoçadas com uma xícara e meia de açúcar. Eles também receberam doces que não existiam comercialmente, fabricados pela indústria de confeitaria, desenvolvidos apenas para concentrar ainda mais açúcar, em vez de fazê-los tomar o produto quase puro.
(Fonte: Sveriges Radio/Reprodução)
Aqueles que se comportavam mal, no caso das crianças, devido ao rigor do confinamento ao qual eram submetidas, recebiam o dobro da quantidade de açúcar, além de banhos frios. Tudo isso durou dois anos, entre 1947 e 1949, quando o estudo chegou à conclusão que o açúcar, de fato, desempenha um papel significativo no desenvolvimento da cárie, ao contabilizar mais de 2 mil casos do problema entre os envolvidos. Os documentos indicaram que metade dos dentes dos pacientes envolvidos ficaram complemente podres.
Diante à insatisfação da indústria açucareira com os resultado, os pesquisadores não publicaram o estudo, que só veio a público em 1953. Ainda que tenha oferecido provas concretas sobre o papel do açúcar na manifestação da cárie, houve um extenso debate sobre o tempo em que o estudo ficou retido, e como os cientistas foram, provavelmente, comprados pela indústria.
Nenhum dos debates, porém, foram sobre a real problemática do experimento: o uso de humanos como cobaias. A ética do estudo só foi contestada em 1990 pelo governo sueco, quando já era tarde demais para os envolvidos, que sucumbiram aos efeitos do experimento onde os olhos da sociedade não alcançavam — afinal, eles não estavam "mortos" para ela mesmo?