Fair use: o que é o uso aceitável de uma obra intelectual
Tecmundo
Com toda a certeza você, assim como eu, já se deparou com um evento de tecnologia que não tem tradução para o português ou para outra língua que você não entenda, certo? E aí precisamos nos socorrer a um tradutor online, mas se o programa é ao vivo, não dá tempo de traduzir e sem dúvida nenhuma perdemos aquela informação.
Desde o início da pandemia, as grandes empresas, principalmente as de tecnologia, passaram a efetuar o lançamento de seus produtos por meio de eventos online em seus próprios canais mantidos, por exemplo, no YouTube – mas tudo o que for dito aqui, pode também ser estendido para outras plataformas – sem a presença física de público ou da mídia especializada. Praticamente todas essas transmissões não são realizadas com tradução simultânea, apenas em inglês.
A Samsung, Apple, Xiaomi, a Microsoft e diversas outras empresas de tecnologia já faziam esse tipo de evento, mas com a pandemia que assola o mundo desde o início de 2020, muitas fizeram eventos dessa forma entre 2020 e 2021 sem tradução nenhuma.
Nesse caso, levando em conta que somos mais de 200 milhões de brasileiros, e que, segundo dados do British Council, apenas 5% sabem se comunicar em inglês, e que apenas 1% realmente é fluente, 190 milhões ou 198 milhões de pessoas não teria o direito de acesso à informação.
Pois é. Como é que você, meu querido leitor, vai poder escolher entre um ou outro lançamento? Como vai saber se um produto é melhor ou pior do que o dos concorrentes, e se aquele “lançamento” é realmente um lançamento ou um produto requentado, se não conseguimos entender o que está sendo dito? Não dá. Não temos informação.
Pensando nisso, algumas pessoas e empresas tiveram iniciativa de transmitirem ao vivo os programas em seus canais das redes sociais, visando dar ao público detalhes sobre esses produtos e serviços. Ao assim fazerem, prestam um relevante mister de disseminação de informações para todos os brasileiros.
Exemplo de transmissão de evento com tradução simultânea
Mas as “proprietárias” dos direitos de reprodução – que é um dos direitos conexos sobre essas obras –, sabe-se lá por que, proíbem com unhas e dentes que qualquer terceiro faça essa transmissão simultânea, alegando que como o direito de reprodução seria só delas, só elas é quem podem usar esse material.
E olha.... não é brincadeira o que essas empresas investem de dinheiro para controlar quem está fazendo isso. Contratam advogados e empresas de monitoramento em todo o mundo para fiscalizar e se encontrarem, imediatamente notificam a plataforma onde está sendo feita a transmissão através do chamado strike, e exigem o encerramento imediato e automático dessa transmissão, o que acontece muito.
No Brasil, não vigora o notice and take down, uma vez que deve sempre ser dada a oportunidade de argumentação ao denunciado. Do contrário, haveria uma condenação prévia sem oportunidade de defesa, o que é vedado pelo inciso LV do artigo 5 da Constituição Federal.
É claro que os direitos autorais são protegidos por leis internacionais e pela Constituição Federal, já que é uma propriedade. Mas a Constituição também determina que a propriedade atenderá à sua função social, no inciso XXIII do artigo 5.
Como fazer a tradução simultânea de um evento no seu canal do YouTube sem infringir a lei?
Pensando nisso, diversas pessoas e empresas têm acompanhado essas transmissões e efetuado a tradução simultânea do que é apresentado, com o intuito de informar o mercado consumidor, muitas vezes desligando a monetização daquele vídeo e daquela transmissão. Para quem não sabe, “monetização” é a exibição de publicidade que é feita em todos os vídeos de um canal que está habilitado como sendo relevante para veicular publicidade, e se essa monetização é desabilitada, pode se dizer que a intenção é informativa e técnica, sem conotação comercial e sem ganhar nada.
Olha só gente! Sem lucro. Se alguém tiver uma atitude dessas, tem que ser sem a intenção de ganhar direito com ela. Esse é um dos requisitos a serem observado na chamada regra dos 3 passos, para saber se há o uso aceitável de uma obra.
Esses passos podem estar presentes quando, por exemplo:
1. for um caso especial (um evento isolado e importantíssimo para a comunidade mundial que consome aparelhos eletrônicos em geral, mas todo em inglês);
2. que não afete o uso do material comercial por quem tem os direitos de retransmissão porque não há apropriação como se o material fosse de terceiro;
3. não cause nenhum prejuízo que seja tendente a diminuir seus lucros.
Segundo as regras do Google para o Youtube, quando a monetização é desabilitada, isso pode ser encarado como um dos requisitos do “fair use”, ou uso aceitável.
Uso aceitável no YouTube
Uso aceitável é uma doutrina jurídica que autoriza a reutilização de materiais protegidos por direitos autorais em determinadas circunstâncias, sem a necessidade da permissão do proprietário do conteúdo.
Diretrizes do uso aceitável
Cada país tem regras diferentes sobre quando é permitido usar algum material sem a permissão do proprietário dos direitos autorais. Por exemplo, nos Estados Unidos, obras de comentários, análises, pesquisa, ensino ou reportagem podem ser consideradas de uso aceitável. Outros países têm um conceito semelhante, chamado tratamento aceitável, que pode funcionar de forma diferente.
Os tribunais analisam possíveis situações de uso aceitável de acordo com os fatos específicos de cada caso. Recomendamos que você busque aconselhamento jurídico antes de enviar vídeos que contenham material protegido por direitos autorais.
Em nenhum momento as empresas detentoras dos direitos sobre essas transmissões são prejudicadas, ao contrário, uma vez que ao realizarem as retransmissões dos eventos em português e comentá-los, se beneficiam diretamente, pois os consumidores podem ter acessos à informação sobre os novos produtos e entenderem quais as suas características e decidir comprá-los. Ou não, e pode ser por isso que algumas lutam para que não haja a disseminação das informações.
O uso justo – ou fair use em inglês – consiste em um conjunto de diretrizes instituídas em 1976 no Título 17, parágrafo 107, do US Copyright Statute, que permite a utilização de materiais protegidos pelos direitos autorais sem que o utilizador infrinja os direitos daquele conteúdo quando, por exemplo, efetuar o uso com fins de comentário, críticas, pesquisa, reportagem e educação, e sem lucro.
A Digital Media Law, mantida pelo Berkman Center for Internet & Society, tem uma definição legal sobre o que é o que o fair use, em tradução livre minha para o português:
A política por trás da lei de direitos autorais não é simplesmente proteger os direitos daqueles que produzem conteúdo, mas "promover o progresso da ciência e das artes úteis". U.S. Const. Arte. I, § 8, cl. 8. Como permitir que os autores façam valer seus direitos autorais em todos os casos, na verdade dificultaria esse fim, primeiro os tribunais e depois o Congresso adotaram a doutrina de uso justo para permitir o uso de materiais protegidos por direitos autorais considerados benéficos para a sociedade, muitos dos quais também têm direito a Proteção da Primeira Emenda. O uso justo não permitirá que você simplesmente copie o trabalho de outra pessoa e tenha lucro com ele, mas quando seu uso contribui para a sociedade, continuando o discurso público ou criando uma nova obra no processo, o uso justo pode protegê-lo.
Um senhor chamado José de Oliveira Ascenção (que só é uma das maiores autoridades mundiais em direitos do autor e que foi meu Professor), escreveu um artigo chamado O Fair Use no Direito Autoral onde ele fala sobre quais seriam os requisitos para a configuração desse direito de uso, e cita 4 critérios que são necessários:
1. O proposito e a natureza do uso, nomeadamente se é comercial ou para fins educativos não lucrativos;
2. A natureza da obra - É de supor que nas obras mais fácticas o âmbito da utilização fair seja maior que nas obras mais imaginativas;
3. A quantidade e a qualidade da utilização relativamente à obra global;
4. A incidência da utilização sobre o mercado atual ou potencial da obra.
É de se citar o número 2 do artigo 9 da Convenção de Berna, que autoriza aos Países Membros o direito de regularem internamente as condições para a reprodução seguindo a chamada Regra dos Três Passos, ou seja, em casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.
Assim, por mais que o Brasil ainda não tenha adotado a possibilidade de uso aceitável de obras intelectuais, fica clarividente que as regras do fair use podem e devem ser aplicadas quando houver um interesse coletivo social em determina retransmissão, desde que essa retransmissão siga as regras acima esclarecidas, aplicável o inciso III do artigo 46 da lei 9.610/98.
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