Opinião: Por que a televisão brasileira insiste em fazer crítica política de maneira indireta?
Contigo!
Grandes mudanças sociais e políticas costumam trazer grandes reverberações na produção cultural: pense em quantas obras foram inspiradas pelos efeitos do 11 de Setembro nos EUA. No Brasil, no entanto, as obras políticas parecem ser mais tímidas.
Um bom exemplo de se observar é como o governo de Donald Trump inspirou os criadores nos Estados Unidos. Séries extremamente críticas como The Good Fight (disponível no Brasil através da Amazon Prime Video) apostaram no cenário político e social do país como trama principal, tratando com ironia e acidez os absurdos do agora ex-presidente, sem nunca deixar de apontar os erros dos democratas que levaram ao impensável.
É claro que isso é facilitado por uma enorme diferença entre a terra do Tio Sam e a nossa: por lá, a liberdade de opinião (o famoso fredom of speech) é um direito inabalável, presente na Constituição, que permite inclusive que "opiniões" racistas, preconceituosas e até violentas sejam difundidas sem interferência do governo, e o mesmo serve para possíveis perseguições políticas.
Outro ponto bem diferente é que, enquanto por aqui os canais de TV exibem sua programação através de uma concessão pública, por lá as emissoras são divididas entre comerciais e não-comerciais. As comerciais não dependem de uma licença para transmitir, enquanto no Brasil as concessões têm inclusive sido usadas como uma ameaça: continuem as críticas e iremos repensar a renovação da concessão.
No Brasil, o governo Bolsonaro chega ao terceiro ano com uma carga bastante pesada de escândalos: do caos na pandemia, incluindo denúncias de possível corrupção na compra de vacinas, passando pelo desastre ambiental, casos de repasse de salários de servidores... o prato é cheio para quem quisesse criticar de maneira direta. Mas não é o que vemos: até mesmo em noticiários é raro ouvir a responsabilização de alguém. "O governo" é tratado assim, como uma entidade sem nome e sem forma.
Na ficção, menos ainda. É verdade que desde o início do governo Bolsonaro, as políticas públicas de incentivo à cultura foram marcadas como supérfluas e cortes sucessivos aconteceram na área. A falta de verba para a produção audiovisual é um problema antigo do país que começou a ser remediado somente nas últimas duas décadas. Só que existe hoje uma nova peça nesse xadrez, que é o streaming, Plataformas como a Netflix, a Amazon Prime Video e até a Globoplay têm o poder financeiro para driblar tudo isso, mas parecem estar preferindo conteúdo inofensivo ou com qualquer menção política relegada a um pano de fundo discreto.
Com a chegada da pandemia, todas as produções sofreram grandes atrasos e interrupções. O que foi produzido (incluindo o excelente especial em dois episódios de Sob Pressão) mira no drama pessoal em vez do dedo na ferida social.
Não que o país não tenha produções com viés crítico ou que toque em questões políticas - é que a maior parte delas são ficções de época, focando no Brasil colônia ou na ditadura militar, como Filhos da Pátria. Através desse olhar para o passado é que surgem alfinetadas no presente. Outras, poucas, se aventuram em cenários mais contemporâneos, como O Brado Retumbante, que entrou nos bastidores de uma Brasília pré-impeachment. Sob Pressão também tocou em questões delicadas, incluindo milícias e corrupção na saúde pública. De novo, duas séries que, embora estejam ali falando de política pública, colocam o microscópio no individual
Temos também O Mecanismo, que se empenhou tanto em mostrar a Operação Lava Jato de maneira positiva que se tornou o equivalente a um eletrodoméstico obsoleto, desatualizado, principalmente após o descrédito do juiz Sérgio Moro.
Uma hipótese de um motivo para o tom brando das críticas da nossa mídia pode ser a juventude da nossa democracia. Boa parte dos roteiristas que comandam séries com grande disseminação são pessoas com mais de quarenta anos que estudaram e tiveram toda a formação artística em período de ditadura, quando a arte se expressava muito mais por meio de metáforas, analogias e mensagens disfarçadas, para escapar da censura. A mentalidade prossegue essa: usar uma coisa para falar de outra, ou focar nos indivíduos e se retirar de qualquer discussão social.
Além disso, há de se colocar no lugar de um produtor de conteúdo. Em tempos de milícia digital e perseguições com direito a ameaças de morte, colocar no ar qualquer coisa que não seja discreto ou indireto é se colocar também na linha de tiro.
Diante do absurdo, será que o Brasil não precisa também tratar dele através da ficção, sem os rodeios costumeiros? Mais importante que isso: será que perdemos a chance?