Atlas Pernkopf: O livro de anatomia nazista usado até hoje em cirurgias
Aventuras Na História
Professor de anatomia, o austríaco Eduard Pernkopf se tornou reitor da Universidade de Viena em 1938. Quando estava lá, aprimorou um importante trabalho de 20 anos: a coleção ‘Topographische Anatomie des Menschen’ (ou ‘Atlas de Anatomia Humana Topográfica e Aplicada’ — também chamado apenas de ‘Atlas Pernkopf’).
Segundo o Journal of Biocommunication, os sete volumes do atlas são considerados uma obra-prima científica e artística, afinal, suas 800 ilustrações, que foram produzidas por quatro artistas, são tão detalhadas que muitos médicos não conseguiriam fazer diversas cirurgias — e consequentemente salvar vidas — sem consultar a obra.
Porém, por trás de tudo isso, existe uma grande polêmica: o atlas foi feito com base em cadáveres de presos políticos que foram executados pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Com esse fato, surgiu-se a discussão: usar o atlas está de acordo com a ética médica?
A origem do livro
Como explica matéria da Galileu, Pernkopf se destacou no meio acadêmico devido ao apoio que prestou ao partido de Adolf Hitler. Sua ligação com os nazistas era tamanha que, quando ele se tornou reitor, expulsou todos os judeus da Universidade — até os três que haviam sido laureados com o Prêmio Nobel.
Como dito, Eduard ocupou o cargo de maior prestígio em Viena no ano de 1938. Poucos meses depois, explica matéria da BBC, o Terceiro Reich implementou uma lei para que os corpos dos prisioneiros de guerra fossem levados ao departamento de anatomia da instituição.
Em determinado período, para se ter ideia, a quantidade de cadáveres era tamanha que Pernkopf trabalhava 18 horas por dia fazendo dissecações. Mesmo assim, havia momentos que a ‘oferta’ de corpos era tão grande que algumas execuções tiveram que ser ‘adiadas’.
Conforme diz Sabine Hildebrandt, da Harvard Medical School, à BBC, cerca de metade das ilustrações do livro foram feitas a partir de corpos de gays, lésbicas, dissidentes políticos, ciganos e judeus.
Em 1937, quando a primeira edição do ‘Topographische Anatomie des Menschen’ foi publicado, as assinaturas dos ilustradores Erich Lepier e Karl Endtresser continham suásticas e os raios que são símbolo da SS — a força paramilitar nazista.
Até depois do fim da Guerra, outra edição do atlas, de 1964, ainda apresentava as assinaturas originais com os símbolos hitleristas. Entretanto, ao longo dos anos, as escritas foram atualizadas e toda referência nazi foi retirada.
O atlas passou a se tornar um best-seller, com milhares de cópias sendo vendidas em diversos países. Para se ter ideia de sua demanda, o livro chegou a ser traduzido para cinco idiomas. Mas sem nunca fazer referência ao seu passado brutal.
Por todo seu detalhismo, a obra ajudou a salvar milhares de vidas durante todo esse tempo. Mas no início da década de 1990, a verdade sobre o autor do atlas veio à tona e toda a discussão começou — o livro deixou de ser comercializado em 1994. As cópias que sobreviveram até hoje são vendidas a preços exorbitantes.
A ética médica
À BBC, a cirurgiã Susan Mackinnon, que já consultou o livro para concluir uma operação, diz que se sente pouco confortável com a origem do livro, mas ressalta que seu trabalho não seria o mesmo caso não pudesse consultá-lo.
Já o sobrevivente o Holocausto Joseph Polak, rabino e professor de direito da saúde, afirma que o livro é um enorme “enigma moral”, pois se trata de uma obra feita do “mal real”, mas muito útil, que "pode ser usada a serviço do bem".
Susan concorda com a afirmação, e explica que “nada se compara” com os detalhes mostrados no atlas. Conforme conta, o livro lhe ajudou a "descobrir quais dos muitos pequenos nervos que percorrem nosso corpo estão potencialmente causando a dor".
Mas revela que só faz o uso do mesmo quando todos os envolvidos do procedimento cirúrgico estão cientes das obscuras origens da publicação. "Quando me dei conta da origem sangrenta e maligna desse atlas, comecei a mantê-lo guardado em meu armário da sala de cirurgia".
Em 2018, Polak escreveu um “Responsum” (como se fosse uma resposta acadêmica que tem base na ética médica judaica) junto com o historiador médico e psiquiatra Michael Grodin, sobre se seria certo ou não usar o atlas, se baseando em experiências como a de Susan.
Com isso, chegou-se à conclusão de que grande parte das autoridades judaicas concordou com o uso para salvar vidas, contanto que a história do atlas fosse mais difundida, o que eles enxergam como uma forma de recuperar parte da dignidade perdida pelas vítimas.
"Veja a doutora Mackinnon. Ela não conseguiu encontrar um nervo e é a melhor em sua especialidade. O paciente disse a ela: 'quero que minha perna seja cortada se você não conseguir encontrar'. E ninguém quer que isso aconteça", diz Polak à BBC.
"Então, ela engoliu em seco e pediu para trazerem o atlas de Pernkopf. Ela encontrou o nervo em minutos por causa dessas ilustrações. Ela me perguntou, como especialista em direito da saúde, sobre a questão moral da situação. E eu disse a ela: ‘se isso vai curar essa pessoa e dar a ela sua vida de volta, então não há dúvida de que o atlas pode ser usado’”.