A importância das mulheres na luta antimanicomial brasileira
Aventuras Na História
Ao longo dos séculos, a "loucura" foi vista como algo "anormal" e, portanto, pessoas com predisposições para doenças mentais eram excluídas da sociedade. Diante desse contexto, os manicômios surgem como forma de separar aqueles que estavam fora dos padrões, reforçando "um tipo de 'apartheid' social", como aponta Rachel Gouveia Passos e Melissa de Oliveira em Luta antimanicomial e feminismos.
No Brasil, a primeira instituição psiquiátrica surgiu no Rio de Janeiro, em 1852, intitulada de Hospício de Pedro II. Já no fim do século 19, com a Proclamação da República, os hospícios ganharam "reconhecimento e legitimidade dos parâmetros burgueses definidores da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização", segundo Magali Engel na obra Psiquiatria e feminilidade.
No entanto, antes dos hospícios, já existiam outros métodos de exclusão para mulheres consideradas "impuras". De acordo com Maria José Rosado Nunes, autora de Freiras no Brasil, há registros do século 18 de que mulheres que atrapalhassem a ordem patriarcal eram enviadas a conventos, como, por exemplo, jovens abusadas sexualmente.
Depois, no século 19, a medicina ocidental passou a associar a imagem feminina a doenças mentais por causa da fisiologia. "A menstruação, a gravidez e o parto seriam os aspectos essencialmente priorizados na definição e no diagnóstico das moléstias mentais que afetavam mais frequentemente ou de modo específico as mulheres", descreve Engel.
Já no século 20, de acordo com a obra Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex, os hospícios passaram a ser destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, como acontecia, por exemplo, no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.
A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar."
Maria Clementina Cunha cita, em Loucura, gênero feminino, condições de abusos semelhantes no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. Conforme diz a escritora, pacientes eram punidos de forma radical e privados da autonomia e independência, sobretudo internas mulheres.
Franco Basaglia concorda e reflete em Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica, dizendo que a história dos manicômios está diretamente ligada a opressões históricas que disseminam exclusões sociais, principalmente, ligadas ao gênero, classe e raça.
Reforma psiquiátrica
Em 1989, o então deputado Paulo Delgado apresentou o Projeto de Lei 3.657, que buscava a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país.
Mesmo enfrentando resistência entre a classe médica, famílias de doentes e colegas parlamentares, Delgado conseguiu aprovar seu projeto, em 1990, por meio do acordo de lideranças, constituindo-se na primeira lei de desospitalização em discussão no parlamento latino-americano", afirmou Arbex.
E, assim, o cenário das instituições psiquiátricas no Brasil começou a mudar durante as décadas de 1990 e 2000, quando passou a ocorrer uma série de Conferências Nacionais de Saúde Mental. Até que, em 2001, foi promulgada a Lei 10.216, que busca proteger pessoas com transtornos mentais e assegurar os direitos dos pacientes.
Mais de 60 mil leitos psiquiátricos foram extintos e, além disso, outros sistemas de saúde mental foram criados, como, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as Residências Terapêuticas (RTs), os Leitos de Atenção Integral em Hospital Geral (LAI HG) e a expansão da Estratégia de Saúde da Família.
Vale ressaltar que no Brasil, a Reforma Psiquiátrica foi impulsionada principalmente por movimentos sociais, como a Rede Internúcleos de Luta Antimanicomial (MNLA) e o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA), proporcionando "importantes conquistas no plano institucional", segundo as autoras Passos e Pereira, que, na publicação de 2017, resgataram o lema Por uma sociedade sem manicômios.
"Vincula-se necessariamente à luta pela transformação societária anticapitalista, não podendo, neste percurso, abdicar de uma luta contra o machismo e o racismo. Eis um grande desafio, especialmente em tempos de tantos retrocessos e riscos colocados no cenário político nacional. Eis também uma urgente e imprescindível necessidade: voltarmos às bases do movimento social antimanicomial e sua inseparável construção com outros movimentos sociais".
Em Nem loucas, nem criminosas, Ingrid Farias faz questão de destacar que estas lutas sociais se deram a partir do protagonismo feminino. Segundo ela, foi graças à iniciativa de mulheres que acompanhavam filhos ou maridos nas instituições psiquiátricas, que houve mudanças efetivas no sistema.
"A reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial são responsáveis pelo fechamento de diversos hospitais psiquiátricos em todo Brasil. Esses hospitais foram, durante anos, os muros de encarceramento das pessoas consideradas delinquentes, loucas e usuárias de drogas ilícitas. Estas foram as justificativas para a higienização social e a violação de direitos dessas pessoas num passado não tão distante".
Contudo, para Paulo Amarantes, autor de Loucos pela vida, é importante frisar que os modelos clássicos de psiquiatria estão presentes até os dias de hoje, uma vez que os sistemas de exclusão estão enraizados na sociedade. Portanto, é fundamental a análise histórica desses processos e atualizar-se sempre.
Victória Gearini é colaboradora de Aventuras na História e o artigo acima é uma adaptação do seu trabalho em pós-graduação em Direitos Humanos, Responsabilidade e Cidadania Global. O trabalho completo pode ser lido clicando aqui!