Além de Eunice Paiva: as mulheres que foram vítimas da ditadura militar

Aventuras Na História






A história de vida de Eunice Paiva, resgatada em "Ainda Estou Aqui", reacendeu o debate sobre as mulheres que foram vítimas da ditadura militar. Eunice viu o marido, Rubens Paiva, deputado cassado, ser levado de casa para nunca mais voltar.
O caso Rubens Paiva se tornou um dos mais emblemáticos desaparecimentos durante os chamados Anos de Chumbo. O longa também mostra a força de uma mulher em busca de Justiça e contra os horrores do regime.
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No entanto, ela não foi a única vítima. Infelizmente. Nos 21 anos de escuridão que assolaram o país, mulheres foram detidas, torturadas e mortas pelas mãos dos agentes de poder.
Agora, as histórias de 50 delas são resgatadas pela professora, militante dos Direitos Humanos e escritora paulistana Daniela Bonafé, que está prestes a lançar o livro 'Rosas de Chumbo' (Editora Toma Aí Um Poema).
"As cinquenta mulheres que homenageio em meu livro foram torturadas e mortas durante o regime de exceção no Brasil. Eram estudantes, donas de casa, militantes dos direitos humanos, filiadas a partidos políticos, trabalhadoras e operárias, ligadas a Arte e a Cultura, entre outras atuações. Eunice Paiva conseguiu sobreviver ao regime e pode lutar pela verdade e pela preservação da memória de seu marido e sua família, mas essas mulheres que trago em Rosas de Chumbo não tiveram essa oportunidade", diz em entrevista ao site Aventuras na História.
"Por mais que tenham lutado e sofrido, morreram pelas mãos do Estado e reviver suas histórias dá a elas a chance de serem lembradas, para além de atestados de óbito e documentos que ninguém deseja ler, tamanha a dor que nos remetem. Sua militância pela justiça, pela liberdade, pelo fim das desigualdades, pelos direitos humanos, ainda é uma prerrogativa na vida daquelas e daqueles que desejam um mundo melhor e elas, que nos antecederam, acreditavam nesse mundo e através da luta, buscaram incansável e incessantemente fazê-lo acontecer. Acredito que honrar suas histórias nos ajuda a não repetir os erros do passado", prossegue.
Revivendo cicatrizes
Dividido em 13 capítulos, 'Rosas de Chumbo' retrata a história de 50 mulheres que foram mortas pela ditadura. Nesse romance experimental, Daniela narra essas trajetórias em diferentes linguagens de texto, como poesia, crônica, diário, conto, música e teatro. O formato híbrido faz com que cada uma delas tenha uma identidade única, diferente da desumanização impostas a elas pelo regime.
Daniela, que sempre estudou temas como mulher, violência e opressão, precisou ir além para escrever 'Rosas de Chumbo', confessando que seu enlace tão visceral com o tema provocou desgastes físicos e emocionais.
"Esse tema me é caro há muito tempo, mas sabia que precisava estar pronta para mergulhar nele de cabeça. Parece que a vida foi me preparando devagar para esse mergulho e eu, atenta, fui prestando atenção ao caminho. Então eu comecei a dormir e acordar com a necessidade de falar disso, especialmente nos últimos anos, depois de testemunhar algumas pessoas pedindo a volta da ditadura no Brasil", conta.
Quando decidi iniciar a pesquisa, sabia que seria difícil, mas não imaginei a totalidade dos impactos em mim. Cheguei a passar mal fisicamente durante as leituras que fiz dos documentos, que são públicos e que podem ser consultados num clique".
Além do desgaste emocional que o tema causava, a autora aponta que até mesmo seu corpo começou a dar sinais de exaustão. "Ao mesmo tempo, quanto mais eu lia, mais crescia em mim a vontade de transformar aquilo em algo mais sensível e palatável, que pudesse ser fruído de forma mais poética e que se conectasse com as pessoas pela humanidade e não pelo reconhecimento da barbárie".
A partir da ficção, Daniela concedeu uma sobrevida às personagens retratadas no livro, lhes conferindo sonhos, desejos e vontades. Além, é claro, de reviver a importância da memória; de contar para não esquecer e para não repetir.
"Não posso dizer que trouxe um final feliz. O livro não esconde a dor, a tortura, a morte de todas elas e a máquina estatal como agente do horror. O que fiz foi ficcionalizar algumas cenas que imaginei delas no trabalho, em casa, com seus amores; tentei recriar algumas de suas memórias de estudantes, de filhas, em relacionamentos com amigas e em situações de trabalho e de luta".
"Todas as pessoas sonham, têm planos e desejos; ninguém nasceu ou cresceu para ser vítima da barbárie, ninguém sequer pensa sobre isso ocorrendo em sua vida. A gente quer ser feliz, se realizar naquilo que acreditamos, amar e ser amado. Essas mulheres tiveram suas vidas brutalmente interrompidas e foram parar em valas e listas, que muitas vezes só são lembradas por familiares que sentem essa dor que não cabe, diariamente. Meu livro é uma 'femenagem' e também uma forma de lembrar e resistir".
Histórias que chocam
Como já dito, 'Rosas de Chumbo' retrata a história de 50 mulheres que foram mortas pela ditadura. Daniela conta que para compor a obra, selecionou os casos que mais consegui mais informações que pudessem ajudá-la na escrita.
"Informações que fossem possíveis de imaginar em cenas e de recriar em texto, para ser apreciado através de uma leitura. Todas elas estavam listadas nos documentos da Comissão Nacional da Verdade, em diversos momentos da ditadura entre 1964 e 1983".
"Quando iniciei o projeto, acreditei que daria conta de cada uma delas em um ou dois dias de pesquisa, mas com o passar do tempo, fui entendendo que não bastava pesquisar e ler, eu precisava lidar com aquilo dentro de mim para então tentar escrever, porque havia coisas descritas tão insuportáveis que eu não conseguia sequer rabiscar uma letra. Todas as histórias são marcantes, mas realmente algumas consumiram muita energia". Confira abaixo algumas histórias relatadas no livro:
Nilda Carvalho Cunha e Esmeraldina Carvalho Cunha: Filha e mãe respectivamente, mortas em 1971 e 1972. Nilda foi torturada e passou por internação psiquiátrica violenta, enquanto sua mãe acabou perseguida por lutar pela verdade sobre sua filha. Esmeraldina também acabou internada em hospital psiquiátrico. Pouco tempo após sua saída, foi encontrada morta em casa.
Gastone Lúcia Brandão: Sofreu trinta e quatro lesões, entre tiros e facadas por todo o corpo.
Lígia Maria Salgado Nóbrega: Executada aos 24 anos e grávida de dois meses.
Mas foi quando li sobre Soledad Barret Viedma que achei que era hora de parar, que eu não ia mais suportar. Soledad foi morta grávida de quatro meses e foi encontrada num barril, com 4 tiros na cabeça, muito sangue coagulado nas coxas e nas pernas, e o feto, caído aos seus pés, morto naquele horror. Chorei por dias com essas imagens".
Por fim, Daniela Bonafé aponta que o processo de humanização das vítimas é essencial para que todas as pessoas as reconheçam em seus direitos negados, as vejam como mulheres e não como nomes, mulheres que tinham sonhos, famílias, ideais, valores.

"Honrar essas mulheres e mantê-las vivas em nossa memória nos dá força para seguir em frente, confiantes de que jamais permitiremos o retorno da opressão e de regimes autoritários".
"Quando as imaginamos em suas múltiplas atuações, quando as visualizamos em seus corpos e através da leitura, nos transportamos para essas cenas, ultrapassamos o papel e nos conectamos de forma empática diretamente com elas, no passado. E então sentimos que não é possível que algo assim aconteça novamente conosco, com nossas filhas, com nossas mães, com todas as mulheres que virão depois de nós, com ninguém. Como escrevi em meu livro, que jamais percamos de vista o nosso passado e onde e como queremos chegar nas auroras que nascem. Ditadura nunca mais!".


