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"Eu saí do DOI-CODI, mas o DOI-CODI não saiu de mim", diz ex-preso da ditadura
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"Eu saí do DOI-CODI, mas o DOI-CODI não saiu de mim", diz ex-preso da ditadura

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Aventuras Na História
18/03/2025 22h00
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©Felipe L. Gonçalves/Brasil247
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Alex Solnik tinha apenas nove anos quando chegou no Brasil. Ele e seus pais desembarcaram da Ucrânia em terras tupiniquins. "Tudo aqui me era estranho, a começar do idioma, eu não entendia porque 'pois não' quer dizer sim e 'pois sim' quer dizer não", conta em entrevista ao site Aventuras na História. 

"Eu aprendi a falar português rapidamente, comecei a escrever poesias, e eu era metido, com uns doze anos levei minhas poesias para o Guilherme de Almeida avaliar, veja que coisa, naqueles tempos os ídolos das crianças eram poetas e palhaços", diz Solnik, autor de 'O dia em que conheci Brilhante Ustra' (Geração Editorial), onde conta sua história de vida. 

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Capa do livro 'O dia em que conheci Brilhante Ustra' - Divulgação

Aos doze anos, Solnik assinou sua primeira entrevista para o guia 'Diversões Juvenis', da Editora Abril, onde escreveu para a seção 'Entreviste o seu ídolo', após ser sorteado para um bate-papo com Arrelia. 

"Acho que você não conhece, nem a maioria dos leitores sabe quem é, era o palhaço mais famoso de São Paulo, fazia dupla com Pimentinha, que era o ‘escada’, na TV Record, o ‘Grande Circo do Arrelia’, eles batiam de frente com Fuzarca e Torresmo, na TV Tupi. Eu era um pirralho", explica. 

Mas, a aparente vida tranquila de Alex Solnik mudou aos 14 anos, em 1964, mesmo ano em que os militares deram um Golpe de Estado e instalaram uma ditadura que durou longos 21 anos. 

Visão política de um menino

Embora fosse somente uma "criança que não sabia de nada" naquela época, Solnik recorda que todas as pessoas de sua idade eram contra a ditadura. "Era vergonhoso ser a favor".

"Não tinha polarização, quem era a favor ficava quieto. Ser contra a ditadura significava ser de esquerda, quem era a favor da ditadura era de direita. E os únicos poucos jovens que estavam nessa eram da Tradição, Família e Propriedade (TFP) e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), os outros caras de direita eram uns velhos mal-humorados, sempre de terno preto. Não havia jovem de direita, como hoje", contextualiza. 

Apesar de sua visão política da época, Solnik conta que jamais fez parte de um grupo contra a ditadura. "Não tinha vocação para cumprir ordens, mas claro que era contra, só que minha turma era a turma do 'amor livre', do 'faça amor, não faça a guerra', do 'flower power', era antes da AIDS, entende? E não da luta armada".

Sem nunca ter sido convidado para um grupo de guerrilheiros, Alex conta que alguns de seus amigos do Colégio de Aplicação chegaram a ser chamados, "como o Pérsio Arida, que virou o brilhante economista, um dos pais do Plano Real, o único que deu certo".

Por isso, jamais imaginei que um dia seria acordado por uns caras fortemente armados, com metralhadoras. Sabe o Gregor Samsa [personagem de Franz Kafka em A Metamorfose], que ao acordar virou uma barata? Pois eu, ao acordar, virei um perigoso guerrilheiro".

O se tornar um 'perigoso guerrilheiro' que Alex Solnik se refere, remete ao ano de 1973, quando ele foi preso por agentes da ditadura e passou 45 dias preso no DOI-CODI. 

Antes da prisão, Solnik relata como foi sua vida durante a primeira década da ditadura. "Meus pais chegaram ao Brasil sem um tostão, foram trabalhar como camelôs na periferia de São Paulo, como faziam todos os imigrantes vindos da Ucrânia, da Rússia ou da Lituânia. Ninguém pedia emprego, iam para a rua vender roupa e outros produtos, 'shmates' em ídiche, o idioma que eles falavam em casa. Então você imagina, era uma vida muito dura, mas para eles era maravilhoso porque, apesar da ditadura, eles podiam trabalhar!".

Quando viviam na Ucrânia, ele explica que alguns trabalhos eram muito perigosos. Um exemplo é o seu próprio pai, que atuava como operário em uma fábrica de tintas. Como o salário era "uma miséria", para ganhar um dinheiro a mais, ele pintava a casa de conhecidos

"Mas tinha que ser escondido, à noite, para o vizinho não ver, porque poderia denunciá-lo à polícia por prestar um serviço particular, e meu pai seria deportado para a Sibéria, sem julgamento nem nada. Minha mãe morria de medo, só deixava meu pai fazer isso em último caso", recorda. 

A vida de Alex Solnik mudou, como o mesmo aponta, quando ele entrou no Colégio da Aplicação, aos 16 anos, onde passou a ter aulas de teatro. "Alunas ficavam grávidas e os alunos davam aula para os alunos. E todos escreviam poesias e pregavam no mural que ficava ao lado da cantina. Era tão bom que vários professores foram presos e o colégio fechou".

De frente com Ustra

Em 1973, o Brasil vivia o auge da ditadura. Cinco anos antes, sob o governo de Artur da Costa e Silva, o AI-5 suspendeu direitos civis, cassou deputados da oposição e institucionalizou a perseguição e tortura de pessoas contrárias ao regime. 

Agora, comandados por Emilio Garrastazu Médici, os militares eram ainda mais cruéis. Na manhã do dia 4 de setembro de 1973, Solnik acordou de um sono tranquilo com um estranho batendo à sua porta. O sujeito anunciava sua detenção sem nenhum motivo. 

"Eles não explicam nada, nem eu pedi explicações. Você não pode saber o que está acontecendo, você tem que sentir medo. Tudo o que fazem é para deixar você apavorado. O lance é o seguinte: eles batem e você apanha. E se não ficar quieto, apanha mais. Você tem que fazer o que eles mandam. Eles podem fazer com você o que quiserem", explica. 

No caminho do DOI-CODI ouvi uma frase terrível: 'nós vamos completar o serviço que Hitler começou'. Eles já sabiam quem eu era". 

Alex Solnik ficou detido por 45 dias no DOI-CODI de São Paulo, comandado na época pelo Coronel Brilhante Ustra. "Eu sabia quem ele era, é claro, sabia que o DOI-CODI existia, mas não que fosse aquilo, um filme de terror ao vivo, 24 horas por dia, gritos, ameaças, barulho de cadeado, gritos de 'pendura', pau-de-arara, cadeira do dragão, maquininha de choque, aquilo era o castelo mal-assombrado do coronel Ustra".

"Não há covardia maior do que amarrar uma pessoa, nua, num cano estendido entre dois cavaletes, de cabeça para baixo e dar choque e bater nela, choque nas partes mais sensíveis, não um cara só batendo, mas vários, cinco ou seis — um dos torturadores usava uma toga mal ajambrada, era o Romualdo, claro que era codinome, ninguém ali usava seu nome, fora o Ustra, porque esse era o todo-poderoso não precisava esconder seu rosto, tinha carta-branca da ditadura. Eu disse para ele que estavam cometendo um erro comigo, eu não era ninguém", comenta. A resposta de Ustra está presente no livro. 

Reencontro com o passado

Solnik conta que após viver todas as barbáries no DOI-CODI, demorou 50 anos para escrever seu livro; e só conseguiu após voltar à cela onde ficou, a X5, durante quatro semanas, em abril do ano passado. 

"Eu já tinha tentado escrever várias vezes, mas sempre faltava alguma coisa, porque eu escrevia como se fosse reportagem, jornalismo é razão, e o livro só nasceu porque eu escrevi com o fígado, como literatura, pois só a literatura pode transmitir cinquenta anos depois tudo o que eu senti naqueles quarenta e cinco dias, um por um".

"Você quer saber se fui torturado? Há vários tipos de tortura, vários métodos: sequestrar alguém que está na sua casa, sem acusação, sem ordem judicial é tortura ou não é? Claro, as metralhadoras, os socos na cabeça, o capuz, os berros de pavor, o barulho das chaves, o rádio tocando alto para abafar os gritos são fichinha perto do que passou o cara com quem dividi o X5, que usava sete nomes, e que eu chamo de O.R", recorda. 

Durante seus 45 dias no DOI-CODI, Solnik relata que maior do que o medo de morrer, foi o temor de que O.R. morresse. "Certo dia, o médico veio vê-lo depois de uma sessão de suplícios. O.R. estava um trapo. As solas dos pés e as palmas das mãos em carne viva. Eu tinha que levá-lo ao banheiro, não conseguia andar sozinho. O médico deu um melhoral e o aconselhou a dizer tudo o que sabe, senão morreria. Eu vi essa cena. Até hoje não sai da minha cabeça". 

Eu saí do DOI-CODI, mas o DOI-CODI não saiu de mim. E meu outro medo era que descobrissem o segredo que eu tinha no meu quarto", narra.

Solnik explica que qualquer pessoa que está presa pensava em fugir, mas que isso era impossível. "Então eu 'fugia' contando para O.R. histórias da minha vida, como o dia que passei esperando por Chico Buarque na garagem do prédio em que morava, com o jovem porteiro, que lamentou 'seu' Chico não ser ligado em bagulho; ou o dia em que tomei mescalina no apartamento do cineasta Andrea Tonacci". 

"Eu também 'fugia' de lá fazendo poesias, fiz uma por dia, e repetia para não esquecer, fiz quarenta e cinco e a primeira coisa que fiz ao voltar para casa foi passar para o papel as quarenta e cinco, depois fiz um livrinho chamado 'Toda mudez será castigada', um trocadilho com o nome da peça do Nelson Rodrigues. Vendia em bares e restaurantes e em praças públicas, até que em 1974 resolvi montar um recital no Teatro de Arena. Não sei com que dinheiro", finaliza.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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